sexta-feira, 14 de junho de 2013

Sobre a passagem e outras passagens

Este texto tem apenas a pretensão de tentar abrir um pouco os horizontes para entendermos melhor o fenômeno das manifestações contra o aumento das passagens de ônibus, especialmente em São Paulo. Escrito ao calor dos acontecimentos, com o distanciamento de quem não estava no meio do gás lacrimogêneo, e de quem não apoia nem o vandalismo nem a truculência policial. Mas, especialmente, este é um olhar de quem acredita estarmos em um momento histórico especial, em que as categorias tradicionais de análise não costumam funcionar, e nos quais os fenômenos sociais gostam de surpreender ao observador desatento. Por isso, usando uma expressão de Pierre Bourdieu, este é um exercício de ruptura epistemológica, ou seja, de tentar sair do lugar comum ao confrontar o fato social.

Causas do apoio de massas ao Movimento Passe Livre
O Movimento Passe Livre em São Paulo tem se caracterizado por organizar manifestações sempre que há aumento de passagens. Até agora, sempre foram manifestações isoladas, esvaziadas. Em 2013 foi diferente. Por quê?
A resposta não está no valor do aumento da passagem, em si mesma abaixo da inflação do período, mas no contexto mais amplo. Antes da passagem de ônibus, o trabalhador enfrentou uma elevação geral do custo de vida, concentrada especialmente em alimentos. De acordo com o IBGE, o grupo Alimentos e bebidas teve aumento de preços em torno de 5,98%, contra 2,88% de IPCA acumulado desde janeiro. Diferente de outros surtos inflacionários recentes, o aumento do preço do alimento é mais difícil de ser administrado no orçamento familiar, comprimindo os outros gastos. Por isso, aumentos de preços de comida costumam ter potencial incendiário de mobilização - vale lembrar os casos dos saques ocorridos no Brasil em 1983 e 1998, e mesmo a Primavera Árabe, ocorrida após uma alta geral de preços que levou os alimentos a representarem mais de 80% do orçamento médio das famílias egípcias.
O aumento das passagens não incomodou mais o cidadão comum que o aumento do custo de vida. Contudo, ele pode encontrar um movimento social organizado e disposto a colocar-se contra mais esta elevação de custo. Por isso, esta pauta canalizou uma insatisfação inconsciente e generalizada contra a corrosão do poder de compra da população, causada principalmente pela alta dos alimentos.

Perfil da nova liderança
O Movimento Passe Livre é um movimento novo, organizado fora das entidades tradicionais do movimento social do Brasil, como UNE e CUT. Por isso, não se amarra a compromissos políticos com este ou aquele governo. Mais do que isto, ele se organizou em posição de conflito contra estas entidades, especialmente a UNE, que entrou em choque com o embrião do movimento em sua primeira mobilização na Bahia em 2002.
Por este motivo, o Movimento Passe Livre cresceu em estreita cooperação com a extrema esquerda brasileira, que tem tentado se posicionar como pólo crítico de esquerda ao governo do PT. Desde 2003, PSTU e PSOL buscam estimular as mobilizações contra o governo Lula e Dilma, especialmente em seus aspectos mais liberalizantes.
O PT e seus avatares no movimento, como a CUT e a UNE, vem perdendo pouco a pouco a capacidade de criticar o governo. Mais do que isto, o próprio governo do PT vem se afastando dos elementos mais combativos do movimento social, em detrimento do fortalecimento da coalização de centro-esquerda que o apoia. O governo do PT não apresenta um programa tradicional de esquerda no governo, e o partido, mesmo apesar de seu discurso contraditório (vale ler A segunda alma do PT, de André Singer), não tem se posicionado como pólo à esquerda da coalizão, ou seja, como impulsionador da esquerdização do programa.
Na falta de um elemento crítico dentro da coalizão, que coesionasse os militantes mais combativos no apoio ao governo, a posição dúbia dos êmulos do PT no movimento fortaleceu a extrema-esquerda. Hoje a Conlutas, liderada pelo PSTU e correntes mais esquerdistas do PSOL, é uma das centrais sindicais que mais crescem no Brasil.
O Movimento Passe Livre opera em linha com a extrema esquerda, mas não pensa como ela - basta ver o tom moderado do artigo publicado pelas lideranças do movimento na Folha de S. Paulo. Isto torna o cenário ainda mais imponderável. No final dos anos 1990, o peso político do PT e seus êmulos no movimento social permitiu manter o movimento de contestação ao governo FHC sob controle, conduzindo-o à solução eleitoral de 2002. Com esta nova liderança, desatrelada das instituições tradicionais, a solução do conflito torna-se cada vez mais imponderável.

A fragilidade das lideranças políticas
Em momentos como estes uma liderança política mostra a que veio, solucionando ou agravando uma crise social. Nos anos 1940, um improvável Harry Truman, ligado a mafias políticas do sul atrasado dos Estados Unidos, conduziu os Estados Unidos no início da Guerra Fria de forma a fortalecer sua posição diante de uma URSS poderosa e com controle de maior parte da Europa após a Segunda Guerra Mundial. Em compensação, um homem de caráter como Jimmy Carter foi incapaz de conduzir de forma satisfatória a crise diplomática aberta com a invasão da embaixada dos EUA no Irã.
São Paulo não tem nem uma liderança como Truman, nem um homem de caráter como Carter. Tem dois burocratas de capacidade limitada de elaboração política, Alckmin e Haddad. Nenhum dos dois se destaca na condução de crises políticas. E, diante de uma novidade como o movimento contra o aumento das passagens, tem agido de forma a piorar o cenário.
A inépcia dos dois lideres aparece sob a forma de intransigência. Falta uma avaliação adequada de cenário, e criatividade na condução de soluções. Não souberam abrir nenhum canal de diálogo, nem combinar doses equilibradas de tensionamento e distensionamento. Dificultaram as coisas.
Neste sentido, Alckmin está em vantagem, afinal dialoga com sua base social, mais conservadora que a de Haddad. O prefeito, do PT, nada tem a ganhar com um conflito aberto com um movimento social - quem não gosta de passeata não passará a votar no PT por causa desta postura. Já o governador finca pés em seu eleitorado de maior renda e mais conservador, incomodado com o impacto da "baderna" no trânsito da cidade.
O PT, aliás, só tem a perder com o estado atual das coisas. Causador da inflação, incapaz de construir a paz e em confronto aberto com os movimentos sociais mais dinâmicos, perde apoio pela esquerda e pela direita. A capacidade demonstrada nos anos 1990 de controlar o movimento de massas a seu favor parece ter se perdido na cômoda vida do poder.

Por fim, a polícia
Para acabar, registre-se a incompetência dos policiais de São Paulo na condução do conflito. A Polícia Militar de São Paulo não é treinada para combater o crime, mas para construir o terror institucional. Neste sentido, ela é o último bastião da ditadura, mais fiel aos métodos do DOI-Codi que até mesmo as Forças Armadas.
Na condução do conflito com os manifestantes, utilizaram-se da mesma abordagem fracassada adotada na Cracolândia e no combate ao PCC: a instalação generalizada do terror e da arbitrariedade em lugar do uso inteligente da força. Assim como faltou inteligência para diferenciar o pobre do bandido do PCC, ou o dependente do traficante na cracolândia, faltou capacidade para diferenciar o manifestante pacífico do baderneiro.
Esta polícia truculenta e anti-democrática, que acabou fortalecendo os elementos mais anárquicos e violentos do movimento pelo passe livre, só existe porque interessa a uma parcela considerável da sociedade paulista. Esta parcela não quer o fim do crime, mas assegurar que o pobre, a "gente diferenciada", não se aproxime de seu mundo bolha. Por isso não é uma polícia de CSI, mas um braço institucionalizado do terror social a serviço do preconceito de classe. Curiosamente, é este terror que traz segurança aos círculos frequentados dos muitos manifestantes de classe média dos últimos dias.

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