terça-feira, 10 de setembro de 2013

Dissecando a insatisfação

Nesta sexta fez faz três meses que uma repressão policial desmedida a uma passeata desencadeou uma onda de manifestações surpreendente e até agora inexplicada. Assim como veio, esta onda de insatisfação que durante alguns dias colocou a classe política no córner parece ter ido embora. As multidões se reduzem a meia dúzia de black blocs, a popularidade da presidente cresce e o Congresso tranquilamente decidiu manter o mandato do deputado mais honesto do Brasil, aquele que é descaradamente ladrão Natan Donadon.

Iludem-se aqueles que acreditam que a insatisfação difusa responsável pelas jornadas de junho se acabou. Ela continua lá. Apenas ganhou contornos mais conscientes, e desfez unanimidades frágeis que colocaram interesses sociais opostos lado a lado nas ruas durante algum tempo.

Os fatos de junho para cá aconteceram em uma velocidade que dificultou a sua exata compreensão à medida que a situação evoluía. Agora, com um relativo distanciamento no tempo, é possível identificar e separar os diversos elementos que levaram às jornadas de junho, dissecando a insatisfação difusa que levou milhares às ruas em uma onda sem direção nem propósito claro.

O que não aconteceu
O que aconteceu em junho não foi a eclosão de uma manifestação popular legítima que a direita conservadora tentou capturar para direcioná-la contra o governo do PT, mobilizando seu exército de coxinhas. Esta é a versão dos fatos de uma parte interessada da história, que teta justificar os black blocs e a opção preferencial pela violência gratuita disfarçada de combate ao capitalismo.

O que aconteceu em junho não foi o despertar de uma população enganada por uma ditadura populista que vem comprando as massas com bolsas e políticas compensatórias enquanto tenta construir um comunismo no qual o estado é substituído pelo Eike Batista. Esta é a versão de um setor da direita que tenta capitalizar para si um movimento do qual não fez parte, e que continua tão marginal quanto era antes de junho.

O que aconteceu em junho não foi a tentativa de setores da direita de derrubar o legítimo governo dos trabalhadores por meio da mobilização da classe média golpista, com o apoio da ultraesquerda. Esta é a versão do PT, que se viu pela primeira vez não só fora de uma manifestação popular, mas alvo da mesma.

Variações das três versões acima tem sido ventiladas por setores políticos que se viram incapazes de liderar uma onda que se mostrou maior do que eles, e muitas vezes contra eles. Não são tentativas de explicação, mas construções ideológicas. O objetivo deste post é não só desconstruí-las, mas apontar para aquilo que estas versões não mostram.

O mito do conservadorismo
O maior erro perpetrado pelas ideologias é trabalhar com o vago conceito de conservadorismo. de forma simplória, o conservadorismo "coxinha" é identificado com o interesse das classes dominantes, ao qual o povo adere bovinamente. Por isso, os setores de mais boa fé do polo ultraesquerdista, como Leonardo Sakamoto, chegaram a afirmar que:
esse conservadorismo não é necessariamente fruto da reflexão, mas incutido (pela família e outras instituições) ou derivado do medo de perder o pouco que se conseguiu comprar em um contexto de “cidadania pelo consumo”
Trabalhar com ideologias sem analisar a estrutura de interesses sociais que a suporta é reducionismo - e se tratando das esquerdas um marxismo de botequim. E um reducionismo típico de nosso tempo é identificar todos os que são contra as pautas das esquerdas - que tem incluído desde a defesa de índios até questões de comportamento sexual - dentro de um mesmo rótulo chamado "conservadorismo". Desta feita, o Alckmin e o Feliciano parecem ser parte de um mesmo e terrível grupo de agentes de Wall Street.

Uma análise bem feita do conservadorismo brasileiro, contudo, identificaria que existem duas faces deste comportamento conservador. Uma delas reflete sim o interesse das classes altas, da haute finance, com um perfil de liberalismo econômico e de autoritarismo social. É o conservadorismo que marcou nossas elites em seu projeto de modernização conservadora, que nos levou ao Império, à República, ao nacional-desenvolvimentismo, ao regime militar e à agenda liberal dos governos Collor e FHC. Este, contudo, costuma se situar ao centro no espectro político: gosta de pautas progressistas - os militares aprovaram o divórcio no Brasil - e se apresenta como uma elite ilustrada e tolerante, ainda que seja capaz de apoiar a escravidão ou a repressão violenta dos movimentos sociais.

O conservadorismo mais radical no Brasil não está nas classes mais altas, mas nas mais baixas. É a expressão da busca dos mais pobres por algum grau de estabilidade, em um contexto social no qual mudar pode significar perder o pouco que se tem. Tivessem os ilustrados de hoje relido Euclides da Cunha, encontrariam estas esclarecedoras afirmações:
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. (...) Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. (...) Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter sido criança. Salteou-o, logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas no sertão. Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. É um condenado à vida. Compreendeu-se envolvido em combate sem tréguas, exigindo-lhe imperiosamente a convergência de todas as energias. Fez-se forte, esperto, resignado e prático.
O conservadorismo dos mais pobres, que leva ao apoio eleitoral a fenômenos como Russomanno, Ratinho Jr, ou mesmo ao lulismo na acepção de André Singer, é um reflexo desta condição catastrófica descrita acima. Não é um conservadorismo de dominação, mas sim um conservadorismo de defesa. Combatê-lo pode significar um adesismo a um projeto de dominação aos moldes da modernização conservadora, como nos lembra o sociólogo Jessé Souza.

Os agentes sociais de junho
Assim sendo, podemos definir a onda de manifestações de junho como a confluência de fenômenos sociais paralelos:

  • Desde a eleição de Lula em 2002 a vanguarda do movimento social passa por um longo processo de reorganização, do qual o Movimento Passe Livre é apenas uma parte. Enquanto sindicatos e entidades estudantis aderiram ao novo governo, novas instâncias de movimento se organizaram, em torno de manifestações de perfil comportamental, como a Marcha do Orgulho Gay, a Marcha da Maconha e a Marcha das Vadias. Esta nova vanguarda, afastada da burocracia sindical e livre das amarras dos ativistas da geração anterior, cooptada no PT e no PCdoB, não se degenerou nas amarras do poder, mas se vinculou a pautas pouco populares, vinculadas especialmente a questões de comportamento - gênero, homossexualidade, aborto e drogas, especialmente.
  • Ao mesmo tempo, uma massa de pauperizados ascendeu a um novo patamar de consumo, tornando-se aquela que ficou conhecida como a nova classe média. Com novas oportunidades abertas pela maior formalização do trabalho e pela expansão da renda salarial, sente na pele os limites das políticas públicas de educação, saúde e transporte público, que não estão preparados para dar conta do excedente de demanda que esta população traz. Os sinais de cansaço desta população se fizeram sentir nas eleições de 2010, quando as ambiguidades da candidata Dilma em relação ao aborto levaram a eleição ao segundo turno, e em 2012, quando outsiders como Rusomanno e Ratinho Jr sacudiram a polarização PT x PSDB nas eleições municipais.
  • Enquanto ascendida a nova classe média, o preço era pago pela velha classe média, que arcou com a maior carga tributária e a precarização da educação e saúde privada. Eles, e não os ricos, pagaram a conta da redução da desigualdade social.
A dinâmica do processo social
Nas jornadas de junho, nova e velha classe média se juntaram à vanguarda do movimento social, desencadeando as manifestações de massa que todos viram pela TV e pelas redes sociais. Contudo, a pauta levada à rua pela nova e velha classe média entrou em rota de colisão com as crenças da nova vanguarda do movimento social.

Surgiu logo um movimento que podemos chamar de coxinhismo: uma resistência generalizada aos novos lutadores, chamados de "fascistas", "coxinhas", e instados pelos esquerdinhas a "aprender história". O coxinhismo foi uma reação aos gritos de "sem partido" que tomaram as manifestações de 20 de junho, puxados por grupos fascistas e apoiados pela massa de novos ativistas. Ao mesmo tempo, o MPL, liderança informal do movimento de rua, interrompeu a onda de manifestações assim que o reajuste da tarifa de ônibus foi revogado. Instalou-se a contraposição entre a vanguarda do movimento e as duas classes médias. Exceção honrosa ao PSTU, que se recusou a bater de frente com os novos ativistas e se diferenciou publicamente dos black blocs.

Esta contraposição ficou mais evidente durante a Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro. Nela, a nova classe média tomou as ruas para manifestar a sua fé junto com o papa Francisco, que expressou o tipo de liderança que esta população espera dos políticos. Ao mesmo tempo, a vanguarda do movimento partiu para o confronto, com posturas que variaram do simples "não é procissão, é manifestação" à ofensa pura e simples à fé do povo, manifesta durante à Marcha das Vadias.

Movida pelo mito ideológico do conservadorismo, a vanguarda do movimento acredita que, ao atacar a Virgem Maria, atacava a burguesia. Ledo engano: em uma espécie de marxismo às avessas, estavam batendo de frente com o proletariado. Repetiam assim o equívoco do jacobinismo florianista durante Canudos: ao atacar Antônio Conselheiro, imaginavam defender o povo, mas o estavam massacrando.

A frente única que se reuniu em junho voltou a separar após julho. A velha classe média voltou ao colo da oposição tucana. A nova classe média retraiu-se e pouco a pouco volta a apoiar o governo Dilma. E o movimento social encastelou-se em ações de vanguarda que se tornaram conhecidas por black blocs. Estes desencadearam uma dinâmica de isolamento similar à que sofreram as Brigadas Vermelhas na Itália e o grupo Baader-Meinhof na Alemanha, como bem descreveu Norbert Elias:
Hoje, de novo, os mais radicais entre os grupos que estão alienados do Estado, o grupo Baader-Meinhof e seus sucessores terroristas, também declaram que o Estado Alemão existente já é um estado fascista, que oprime os grupos inconformistas com a ajuda de juízes tendenciosos, cassetetes policiais, uma imprensa que instiga o ódio e outros meios de violência. Hoje, de novo, poderosos grupos dominantes aproveitam os atos de violência dessas minorias como uma ocasião para usar todos os meios do Estado e a violência verbal contra grupos e indivíduos pelos quais sentem antipatia.
Para onde vamos?
O movimento de junho continua a sofrer com a falta de uma liderança que o represente. Após a tomada das ruas em junho, a insatisfação social permanece difusa e sem uma expressão política clara. Os black blocs não representam a frente que se formou em 17 de junho, mas apenas uma parcela de sua vanguarda.

Por outro lado, soam risíveis as tentativas de captura deste movimento pelos diversos partidos, os mesmos que legitimaram Donadon. Das lideranças políticas existentes, a única que tem tomado alguma iniciativa, tímida e ambígua, é o governo Dilma. O governo tucano de SP vem usando as manifestações para legitimar uma nova agenda liberal descolada das demandas sociais, atendendo aos anseios da velha classe média.

Falta uma expressão da pauta política da nova classe média. Esta ainda não tem uma liderança que a represente. Na falta de outra, fica com Lula e Dilma, mas este vínculo é cada vez mais frágil.