terça-feira, 17 de março de 2015

Depois não digam que não avisei

Em 19 de junho de 2013, neste blog, ao postar sobre o apartidarismo das manifestações daquele período em comparação com uma turma apartidária da USP na greve de 2000, afirmei:

"Hoje vejo o discurso apartidário se voltar contra uma nova geração de manifestantes como se voltou contra aquela. E isto me preocupa. Esta postura não abriu o diálogo: pelo contrário, afastou aquela geração da direção do movimento daquele momento."

Em 20 de junho, eu disse:

"O que estamos vendo nas ruas é uma insatisfação antiburocrática. O Movimento Passe Livre, cuja identidade ideológica é mais alinhada a uma certa esquerda tradicional, abriu as portas para uma insatisfação maior, que não cabe no programa da ultra-esquerda. Aliás, não cabe em nenhum programa, nem mesmo no da Rede de Marina Silva."

Em 23 de junho, quando manifestei meu inconformismo com o rótulo recém criado de coxinhas, reforcei que o sectarismo naquele momento não ajudaria em nada:

"Gente tão ortodoxa quanto caixa de maisena percebeu que a pauta de quem aderiu às manifestações não era a mesma deles, que estavam na luta desde antes, quando ninguém notava. "Nós nunca dormimos", dizem, como quem consome mais de dez xícaras de café para ficar acordado. Os "maisenas" não entenderam que eles são uma espécie de relógio quebrado, parado, que marca a hora certa duas vezes ao dia. Não foi o relógio que acertou, foi o tempo que coincidiu com o relógio. As manifestações pelo passe livre coincidiram com uma insatisfação latente em toda uma camada na sociedade, e a fizeram explodir. Diante disso, os maisenas tinham duas opções: entendê-los para liderá-los, ou tentar encaixá-los em sua ortodoxia. Optaram pela segunda escolha, e quebraram a cara."

Em outubro de 2013, eu já sinalizava a ruptura entre os novos ativistas de junho e a vanguarda radical, que se aventura na aventura black bloc:

"Contudo, a vanguarda formada em dez anos de mobilização pós-moderna viu nos seus novos parceiros um perigo, e confundiu as coisas. Desencadeou-se a campanha contra os “coxinhas”, que atuou para desmobilizar de imediato e retomar o movimento apenas com velhos companheiros. O auge desta separação ocorreu durante a Jornada Mundial da Juventude, quando radicais trataram de ofender o espírito religioso da nova classe média, sem entender que o espírito de Francisco estaria ao lado deles."

Um ano depois, quando os arautos da esquerda anunciavam a morte de junho após a eleição, eu lembrava:

"o eleitor mais jovem é mais progressista e mais anti-governo que o eleitorado geral. E outra: junho pode ter representado uma ruptura entre a classe C e o lulismo, em prol de opções mais alinhadas ao seu perfil conservador."

Ou seja, os sinais de que havia uma insatisfação latente na sociedade estava todos aí. Eu não sou um gênio, estava apenas olhando para os fatos. Quem errou foi quem usou os óculos da ideologia para analisá-los.

domingo, 25 de maio de 2014

Por que votarei nulo

O ambiente político está envenenado. Envenenado por correntes de desinformação e por polarizações irracionais. A lógica do medo e da calúnia atravessa o debate público, e nesse ambiente pessoas que buscam ter uma posição independente acabam sendo rotuladas. "Petralha!" gritam uns. "Tucanalha", gritam outros.
Diante desse cenário tomado pela estupidez, achei por bem explicitar minha posição e apresentar minhas razões. Espero assim padronizar uma resposta aos idiotas da falsa polarização. Se não dá para chamá-los à razão, talvez a leitura retrospetiva desse texto possa servir de denúncia prévia do mal que ameaça o exercício da cidadania.
1) O PT perdeu a capacidade de apresentar soluções e dialogar com os diversos setores da sociedade. O governo Dilma tem sido um desastre nos dois aspectos. Desastre nas soluções: estamos há quatro anos em estagnação econômica e nada mais é feito além de repetir as medidas fracassadas do passado, como controle de preços. Desastre no diálogo: empresários, sindicatos e movimentos sociais organizados reclamam da falta de interlocução.
2) Aécio e Campos tampouco representam as mudanças que o país precisa. Aécio se propõe ressuscitar a agenda liberal dos anos 1990, que gerou miséria e desemprego. Campos é uma incógnita. Além disso, seus governos estaduais são tão intervencionistas quanto Dilma no governo federal. Em Minas Gerais, o INDI decide onde o investidor abre sua fábrica, e quais recursos terá acesso.
3) No âmbito estadual, é inaceitável que o mesmo grupo político permaneça no poder por mais de 20 anos, especialmente quando se descobre a corrupção nas licitações de trens e metrô, ou quando a incompetência coloca a maior cidade do país diante do racionamento de água. Contudo, as opções não são melhores. O PT apresenta sua pior opção: um ministro medíocre de um governo medíocre. A outra escolha é um industrial sem indústria, que vem usando a estrutura da Fiesp para fazer campanha eleitoral, enquanto a indústria perde competitividade.
4) No legislativo, o voto proporcional cria uma armadilha. Se votar em um bom candidato, ajudarei a legenda a eleger um pilantra.
5) As opções extremas também não são opções. O golpe contra a candidatura Safatle em São Paulo mostra que não há diferenças entre a extrema esquerda e os grandes partidos. O mesmo pode ser dito da outra ponta, como Bolsonaro e o cara do PSC.
6) A grande responsável por este cenário é a falta de democracia partidária no Brasil. As manifestações desde junho mostram que o país demanda soluções criativas para gerar oportunidades na base da pirâmide. Mas esse clamor não encontra eco nos partidos. Por isso opções como Obama e Thatcher, que mudaram seus partidos de baixo para cima, não acontecem no Brasil.
Precisamos de uma melhor política, feita pelos cidadãos. Infelizmente, não teremos isso em 2014.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Dissecando a insatisfação

Nesta sexta fez faz três meses que uma repressão policial desmedida a uma passeata desencadeou uma onda de manifestações surpreendente e até agora inexplicada. Assim como veio, esta onda de insatisfação que durante alguns dias colocou a classe política no córner parece ter ido embora. As multidões se reduzem a meia dúzia de black blocs, a popularidade da presidente cresce e o Congresso tranquilamente decidiu manter o mandato do deputado mais honesto do Brasil, aquele que é descaradamente ladrão Natan Donadon.

Iludem-se aqueles que acreditam que a insatisfação difusa responsável pelas jornadas de junho se acabou. Ela continua lá. Apenas ganhou contornos mais conscientes, e desfez unanimidades frágeis que colocaram interesses sociais opostos lado a lado nas ruas durante algum tempo.

Os fatos de junho para cá aconteceram em uma velocidade que dificultou a sua exata compreensão à medida que a situação evoluía. Agora, com um relativo distanciamento no tempo, é possível identificar e separar os diversos elementos que levaram às jornadas de junho, dissecando a insatisfação difusa que levou milhares às ruas em uma onda sem direção nem propósito claro.

O que não aconteceu
O que aconteceu em junho não foi a eclosão de uma manifestação popular legítima que a direita conservadora tentou capturar para direcioná-la contra o governo do PT, mobilizando seu exército de coxinhas. Esta é a versão dos fatos de uma parte interessada da história, que teta justificar os black blocs e a opção preferencial pela violência gratuita disfarçada de combate ao capitalismo.

O que aconteceu em junho não foi o despertar de uma população enganada por uma ditadura populista que vem comprando as massas com bolsas e políticas compensatórias enquanto tenta construir um comunismo no qual o estado é substituído pelo Eike Batista. Esta é a versão de um setor da direita que tenta capitalizar para si um movimento do qual não fez parte, e que continua tão marginal quanto era antes de junho.

O que aconteceu em junho não foi a tentativa de setores da direita de derrubar o legítimo governo dos trabalhadores por meio da mobilização da classe média golpista, com o apoio da ultraesquerda. Esta é a versão do PT, que se viu pela primeira vez não só fora de uma manifestação popular, mas alvo da mesma.

Variações das três versões acima tem sido ventiladas por setores políticos que se viram incapazes de liderar uma onda que se mostrou maior do que eles, e muitas vezes contra eles. Não são tentativas de explicação, mas construções ideológicas. O objetivo deste post é não só desconstruí-las, mas apontar para aquilo que estas versões não mostram.

O mito do conservadorismo
O maior erro perpetrado pelas ideologias é trabalhar com o vago conceito de conservadorismo. de forma simplória, o conservadorismo "coxinha" é identificado com o interesse das classes dominantes, ao qual o povo adere bovinamente. Por isso, os setores de mais boa fé do polo ultraesquerdista, como Leonardo Sakamoto, chegaram a afirmar que:
esse conservadorismo não é necessariamente fruto da reflexão, mas incutido (pela família e outras instituições) ou derivado do medo de perder o pouco que se conseguiu comprar em um contexto de “cidadania pelo consumo”
Trabalhar com ideologias sem analisar a estrutura de interesses sociais que a suporta é reducionismo - e se tratando das esquerdas um marxismo de botequim. E um reducionismo típico de nosso tempo é identificar todos os que são contra as pautas das esquerdas - que tem incluído desde a defesa de índios até questões de comportamento sexual - dentro de um mesmo rótulo chamado "conservadorismo". Desta feita, o Alckmin e o Feliciano parecem ser parte de um mesmo e terrível grupo de agentes de Wall Street.

Uma análise bem feita do conservadorismo brasileiro, contudo, identificaria que existem duas faces deste comportamento conservador. Uma delas reflete sim o interesse das classes altas, da haute finance, com um perfil de liberalismo econômico e de autoritarismo social. É o conservadorismo que marcou nossas elites em seu projeto de modernização conservadora, que nos levou ao Império, à República, ao nacional-desenvolvimentismo, ao regime militar e à agenda liberal dos governos Collor e FHC. Este, contudo, costuma se situar ao centro no espectro político: gosta de pautas progressistas - os militares aprovaram o divórcio no Brasil - e se apresenta como uma elite ilustrada e tolerante, ainda que seja capaz de apoiar a escravidão ou a repressão violenta dos movimentos sociais.

O conservadorismo mais radical no Brasil não está nas classes mais altas, mas nas mais baixas. É a expressão da busca dos mais pobres por algum grau de estabilidade, em um contexto social no qual mudar pode significar perder o pouco que se tem. Tivessem os ilustrados de hoje relido Euclides da Cunha, encontrariam estas esclarecedoras afirmações:
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. (...) Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. (...) Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter sido criança. Salteou-o, logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas no sertão. Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. É um condenado à vida. Compreendeu-se envolvido em combate sem tréguas, exigindo-lhe imperiosamente a convergência de todas as energias. Fez-se forte, esperto, resignado e prático.
O conservadorismo dos mais pobres, que leva ao apoio eleitoral a fenômenos como Russomanno, Ratinho Jr, ou mesmo ao lulismo na acepção de André Singer, é um reflexo desta condição catastrófica descrita acima. Não é um conservadorismo de dominação, mas sim um conservadorismo de defesa. Combatê-lo pode significar um adesismo a um projeto de dominação aos moldes da modernização conservadora, como nos lembra o sociólogo Jessé Souza.

Os agentes sociais de junho
Assim sendo, podemos definir a onda de manifestações de junho como a confluência de fenômenos sociais paralelos:

  • Desde a eleição de Lula em 2002 a vanguarda do movimento social passa por um longo processo de reorganização, do qual o Movimento Passe Livre é apenas uma parte. Enquanto sindicatos e entidades estudantis aderiram ao novo governo, novas instâncias de movimento se organizaram, em torno de manifestações de perfil comportamental, como a Marcha do Orgulho Gay, a Marcha da Maconha e a Marcha das Vadias. Esta nova vanguarda, afastada da burocracia sindical e livre das amarras dos ativistas da geração anterior, cooptada no PT e no PCdoB, não se degenerou nas amarras do poder, mas se vinculou a pautas pouco populares, vinculadas especialmente a questões de comportamento - gênero, homossexualidade, aborto e drogas, especialmente.
  • Ao mesmo tempo, uma massa de pauperizados ascendeu a um novo patamar de consumo, tornando-se aquela que ficou conhecida como a nova classe média. Com novas oportunidades abertas pela maior formalização do trabalho e pela expansão da renda salarial, sente na pele os limites das políticas públicas de educação, saúde e transporte público, que não estão preparados para dar conta do excedente de demanda que esta população traz. Os sinais de cansaço desta população se fizeram sentir nas eleições de 2010, quando as ambiguidades da candidata Dilma em relação ao aborto levaram a eleição ao segundo turno, e em 2012, quando outsiders como Rusomanno e Ratinho Jr sacudiram a polarização PT x PSDB nas eleições municipais.
  • Enquanto ascendida a nova classe média, o preço era pago pela velha classe média, que arcou com a maior carga tributária e a precarização da educação e saúde privada. Eles, e não os ricos, pagaram a conta da redução da desigualdade social.
A dinâmica do processo social
Nas jornadas de junho, nova e velha classe média se juntaram à vanguarda do movimento social, desencadeando as manifestações de massa que todos viram pela TV e pelas redes sociais. Contudo, a pauta levada à rua pela nova e velha classe média entrou em rota de colisão com as crenças da nova vanguarda do movimento social.

Surgiu logo um movimento que podemos chamar de coxinhismo: uma resistência generalizada aos novos lutadores, chamados de "fascistas", "coxinhas", e instados pelos esquerdinhas a "aprender história". O coxinhismo foi uma reação aos gritos de "sem partido" que tomaram as manifestações de 20 de junho, puxados por grupos fascistas e apoiados pela massa de novos ativistas. Ao mesmo tempo, o MPL, liderança informal do movimento de rua, interrompeu a onda de manifestações assim que o reajuste da tarifa de ônibus foi revogado. Instalou-se a contraposição entre a vanguarda do movimento e as duas classes médias. Exceção honrosa ao PSTU, que se recusou a bater de frente com os novos ativistas e se diferenciou publicamente dos black blocs.

Esta contraposição ficou mais evidente durante a Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro. Nela, a nova classe média tomou as ruas para manifestar a sua fé junto com o papa Francisco, que expressou o tipo de liderança que esta população espera dos políticos. Ao mesmo tempo, a vanguarda do movimento partiu para o confronto, com posturas que variaram do simples "não é procissão, é manifestação" à ofensa pura e simples à fé do povo, manifesta durante à Marcha das Vadias.

Movida pelo mito ideológico do conservadorismo, a vanguarda do movimento acredita que, ao atacar a Virgem Maria, atacava a burguesia. Ledo engano: em uma espécie de marxismo às avessas, estavam batendo de frente com o proletariado. Repetiam assim o equívoco do jacobinismo florianista durante Canudos: ao atacar Antônio Conselheiro, imaginavam defender o povo, mas o estavam massacrando.

A frente única que se reuniu em junho voltou a separar após julho. A velha classe média voltou ao colo da oposição tucana. A nova classe média retraiu-se e pouco a pouco volta a apoiar o governo Dilma. E o movimento social encastelou-se em ações de vanguarda que se tornaram conhecidas por black blocs. Estes desencadearam uma dinâmica de isolamento similar à que sofreram as Brigadas Vermelhas na Itália e o grupo Baader-Meinhof na Alemanha, como bem descreveu Norbert Elias:
Hoje, de novo, os mais radicais entre os grupos que estão alienados do Estado, o grupo Baader-Meinhof e seus sucessores terroristas, também declaram que o Estado Alemão existente já é um estado fascista, que oprime os grupos inconformistas com a ajuda de juízes tendenciosos, cassetetes policiais, uma imprensa que instiga o ódio e outros meios de violência. Hoje, de novo, poderosos grupos dominantes aproveitam os atos de violência dessas minorias como uma ocasião para usar todos os meios do Estado e a violência verbal contra grupos e indivíduos pelos quais sentem antipatia.
Para onde vamos?
O movimento de junho continua a sofrer com a falta de uma liderança que o represente. Após a tomada das ruas em junho, a insatisfação social permanece difusa e sem uma expressão política clara. Os black blocs não representam a frente que se formou em 17 de junho, mas apenas uma parcela de sua vanguarda.

Por outro lado, soam risíveis as tentativas de captura deste movimento pelos diversos partidos, os mesmos que legitimaram Donadon. Das lideranças políticas existentes, a única que tem tomado alguma iniciativa, tímida e ambígua, é o governo Dilma. O governo tucano de SP vem usando as manifestações para legitimar uma nova agenda liberal descolada das demandas sociais, atendendo aos anseios da velha classe média.

Falta uma expressão da pauta política da nova classe média. Esta ainda não tem uma liderança que a represente. Na falta de outra, fica com Lula e Dilma, mas este vínculo é cada vez mais frágil.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Conservadorismo à brasileira

De uns tempos pra cá a esquerda tem combatido duramente um monstro sem rosto, chamado conservadorismo. Se tem uma coisa que me faz desconfiar são essas palavras amorfas: conservador, elite, povo, progressista... Amorfas porque podem significar qualquer coisa. E, principalmente do ponto de vista da esquerda, porque são expressões sem um caro caráter de classe.

Explico: esquerda que se preza não luta contra o conservadorismo. Luta contra o capitalismo, um sistema econômico bem definido. Isso significa que a esquerda que se preza defende os interesses dos mais pobres e combate os ricos. Quando a conversa da esquerda sai da dicotomia rico x pobre, sem justificar por uma revisão teórica ou concessão tática, desconfio. Algo está errado.

Vejamos: qual o conteúdo desse conservadorismo tão atacado? Basicamente, uma pauta moral religiosa e um projeto de vida individualista. Ou seja, uma combinação da rejeição de comportamentos ditos imorais - drogas, aborto, casamento homossexual - e uma certa resistência a greves, especialmente de metrô, escola e posto de saúde. Bem em geral, superficialmente, é isso.

Agora a pergunta: qual a classe social que se encaixa no perfil acima? Se você respondeu "burguesia", errou. A burguesia brasileira não se caracteriza nem pela religiosidade nem por uma moral de cunho cristão. Sim, projetos de vida individualista são a praia deles. Mas não há resistência às drogas, ao aborto ou à liberdade sexual. Basta ler revista de fofoca.

Se responder "nenhuma", você estará igualmente errado. Na verdade, a descrição acima corresponde aos "batalhadores" de Jessé Souza. Neles, este perfil de conservadorismo é uma espécie de defesa contra as dificuldades da vida, que colocam o risco da miséria na ordem do dia.

Em tempos nos quais as favelas aplaudem um papa, fica uma provocação: em sua luta contra o conservadorismo, estaria a esquerda alinhada aos ricos para combater os pobres?

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Saúde

Têm razão os que dizem que os problemas da saúde pública no Brasil não se resumem à falta de médicos nas regiões de menor IDH. Têm razão os que dizem que os médicos são sim parte do problema.

A saúde pública universal custa caro, por três motivos: o alto preço da tecnologia médica, as liminares que obrigam o SUS a custear remédios caríssimos, e o custo do médico. No caso brasileiro, some-se a má gestão e a corrupção.

Desde a implantação do SUS em 1990, o sistema pouco têm evoluído. Institucionalmente as soluções estão lá. Mas na prática faltam as transferências federais, a tabela SUS não é reajustada, e o dinheiro que deveria ir para a atenção básica se perde em projetos propaganda: farmácia popular, Samu, Ame, Ama etc.

Mas sim, a oferta de médicos ajuda a piorar o problema. E isto começa na formação: uma das faculdades mais caras do país, o curso atrai uma elite social com elevado padrão de vida e raríssimas ocorrências de consciência social. Esta elite busca manter ou elevar seu padrão original, apostando na escolha de especialidades que melhor remuneram. O resultado são as distorções de mercado que vemos: falta de médicos nas redes básicas, atendimento decadente nos planos de saúde...

Diante deste cenário, o papel do Estado é corrigir as distorções. Abrir o mercado é uma iniciativa. Não resolve a saúde pública, mas ataca um de seus problemas estruturais. Falta atacar a qualidade da formação, fazendo valer o alto custo dos cursos para as famílias e o Estado.

Claro que nada é suficiente sem uma política estruturante para a Saúde, coisa que não vemos há mais de vinte anos, para atacar o déficit de gestão e a falta de transparência que permeia o sistema. A Saúde está tão prejudicada que falta até um caso municipal de sucesso, como é Foz do Iguaçu para a Educação. O que temos são ações pontuais, perdidas e isoladas.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Uma nova estrutura social

Este post inicia uma série de análises não sistemáticas sobre as diversas classes sociais do Brasil atual, e os seus impactos no modelo de desenvolvimento que teremos daqui para a frente

Desde o início das jornadas de junho, conhecidas como Revolta da Salada ou do Vinagre, entrou em debate sobre qual seria a "base social" deste novo movimento. O foco principal foi a classe média, alvo de críticas ou elogios baseados sempre em uma visões distorcidas e ideológicas, que pressupõe uma correlação mecânica e imediata entre renda e visão de mundo.

Fato é que estamos vivenciando nos últimos anos um profundo processo de reorganização social. Este processo não estaria relacionado apenas a políticas públicas, mas a uma combinação de reorganização das instituições econômicas e fortalecimento político das redes de proteção social. O que vou apontar aqui tem sido amplamente estudado por diversos autores:

  • Marcelo Neri, atual presidente do IPEA, estudou os padrões de mobilidade entre faixas de renda
  • André Singer tratou do realinhamento eleitoral que conduziu a base da pirâmide social para o apoio ao governo de esquerda
  • Bolivar Lamounier e Jessé Souza, com abordagens diferentes, trataram dos aspectos socioculturais da nova classe ascendente
  • Ruy Braga apresenta uma visão crítica do processo, apontando novas relações de precarização do trabalho
Aglutinando tudo o que estes caras dizem, temos que nos últimos anos toda uma população que sempre esteve afastada dos níveis mínimos de consumo e cidadania começou a melhorar de vida. É uma melhora pequena, mais relacionada ao crescimento da renda e do padrão de consumo, mas que abriu o leque de expectativas destas pessoas. Elas agora anseiam por mais - especialmente educação, que está diretamente relacionado à abertura de novas oportunidades de trabalho. Estes são a chamada "nova classe média" - concordo com Jessé Souza que esta classificação não condiz com a realidade, e melhor seria chamarmos de "nova classe trabalhadora".

A ascensão desta pessoas está relacionada a um padrão de desenvolvimento econômico que está se esgotando - expansão do consumo interno, estimulada pelo crédito acessível. Com a redução de ritmo desta ascensão, a pressão por acesso a melhores serviços públicos relacionados à oportunidades de trabalho - principalmente educação, saúde e transporte - tende a ser crescente. Ao mesmo tempo, buscam uma nova relação com o Estado, a política - do clientelismo pontual para satisfação de necessidade para uma visão do direito às condições básicas de sobrevivência - e a polícia.

Isso explica o apoio da maioria às manifestações, a crítica à repressão policial, e até o apoio popular ao plebiscito. No imaginário desta nova classe ascendente, o sucesso é resultado do esforço próprio. Jessé Souza aponta que esta população sobreviveu às margens da cidadania sempre às custas do trabalho duro e de um elevado nível de sacrifício - legitimado por uma rede de apoio familiar e uma consciência religiosa não apenas protestante/neopentecostal, mas também do catolicismo popular. Logo, ela não vê o bolsa família como um favor, mas um direito à sobrevivência. Por ser um direito, também não sente dívida de gratidão com este ou aquele político, mas quer influenciar o debate público, como fazem desde sempre as classes médias urbanas - liberais e conservadoras - e as elites.

Até agora, a expressão política desta nova classe é um enigma, justamente por ser novo. Ela já apoiou o petismo, mas vem dando trabalho desde 2010, quando as bandeiras programáticas do PT que afrontavam a sua consciência religiosa levou Dilma para o segundo turno. Fenômenos como Ratinho Jr em Curitiba e Russomanno em São Paulo são demonstrações de que este eleitorado quer uma expressão política para chamar de sua, que não seja nem o petismo nem a direita tradicional.

A expressão política desta população significará também qual será o drive de políticas públicas ao qual eles darão suporte. É difícil prever se eles darão suporte a uma versão tropical do Tatcherismo - como acredita Bolivar Lamounier - ou se buscarão herdeiros do lulismo de Singer, ou se vão atrás de uma terceira via. O que está claro são seus interesses: eles querem se afastar o máximo possível dos limites que separam a cidadania plena da vulnerabilidade social, situação em que viveram todos estes anos.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Dilma: Inocêncio III ou Bonifácio VIII

Depois de ouvir o pronunciamento da presidente Dilma, eu havia concluído que ela adotava a estratégia do papa Inocêncio III: dividir os insatisfeitos, atraindo os radicais e compondo com quem era possível compor.

Agora, duas semanas depois, Dilma parece mais com Bonifácio VIII, que viveu dois séculos depois. O momento dos dois papas era similar e a estratégia parecida. A diferença é que Bonifácio VIII fracassou.

O papa Bonifácio VIII tinha à sua frente o rei Felipe o Belo de França, um secularista de deixar Jean Willys e Leonardo Sakamoto no chinelo. No enfrentamento, o rei chegou a prender o papa, que só foi libertado por ação da nobreza romana.

A derrota de Bonifácio VIII significou a submissão da Igreja ao reino francês, com a transferência da sede papal para Avignon. Foi um período de crise para a fé católica, retratado no romance "O nome da Rosa", de Umberto Eco.

Neste momento Dilma se encontra tão acuada quanto Bonifácio VIII. Que o resultado não seja similar.