terça-feira, 10 de setembro de 2013

Dissecando a insatisfação

Nesta sexta fez faz três meses que uma repressão policial desmedida a uma passeata desencadeou uma onda de manifestações surpreendente e até agora inexplicada. Assim como veio, esta onda de insatisfação que durante alguns dias colocou a classe política no córner parece ter ido embora. As multidões se reduzem a meia dúzia de black blocs, a popularidade da presidente cresce e o Congresso tranquilamente decidiu manter o mandato do deputado mais honesto do Brasil, aquele que é descaradamente ladrão Natan Donadon.

Iludem-se aqueles que acreditam que a insatisfação difusa responsável pelas jornadas de junho se acabou. Ela continua lá. Apenas ganhou contornos mais conscientes, e desfez unanimidades frágeis que colocaram interesses sociais opostos lado a lado nas ruas durante algum tempo.

Os fatos de junho para cá aconteceram em uma velocidade que dificultou a sua exata compreensão à medida que a situação evoluía. Agora, com um relativo distanciamento no tempo, é possível identificar e separar os diversos elementos que levaram às jornadas de junho, dissecando a insatisfação difusa que levou milhares às ruas em uma onda sem direção nem propósito claro.

O que não aconteceu
O que aconteceu em junho não foi a eclosão de uma manifestação popular legítima que a direita conservadora tentou capturar para direcioná-la contra o governo do PT, mobilizando seu exército de coxinhas. Esta é a versão dos fatos de uma parte interessada da história, que teta justificar os black blocs e a opção preferencial pela violência gratuita disfarçada de combate ao capitalismo.

O que aconteceu em junho não foi o despertar de uma população enganada por uma ditadura populista que vem comprando as massas com bolsas e políticas compensatórias enquanto tenta construir um comunismo no qual o estado é substituído pelo Eike Batista. Esta é a versão de um setor da direita que tenta capitalizar para si um movimento do qual não fez parte, e que continua tão marginal quanto era antes de junho.

O que aconteceu em junho não foi a tentativa de setores da direita de derrubar o legítimo governo dos trabalhadores por meio da mobilização da classe média golpista, com o apoio da ultraesquerda. Esta é a versão do PT, que se viu pela primeira vez não só fora de uma manifestação popular, mas alvo da mesma.

Variações das três versões acima tem sido ventiladas por setores políticos que se viram incapazes de liderar uma onda que se mostrou maior do que eles, e muitas vezes contra eles. Não são tentativas de explicação, mas construções ideológicas. O objetivo deste post é não só desconstruí-las, mas apontar para aquilo que estas versões não mostram.

O mito do conservadorismo
O maior erro perpetrado pelas ideologias é trabalhar com o vago conceito de conservadorismo. de forma simplória, o conservadorismo "coxinha" é identificado com o interesse das classes dominantes, ao qual o povo adere bovinamente. Por isso, os setores de mais boa fé do polo ultraesquerdista, como Leonardo Sakamoto, chegaram a afirmar que:
esse conservadorismo não é necessariamente fruto da reflexão, mas incutido (pela família e outras instituições) ou derivado do medo de perder o pouco que se conseguiu comprar em um contexto de “cidadania pelo consumo”
Trabalhar com ideologias sem analisar a estrutura de interesses sociais que a suporta é reducionismo - e se tratando das esquerdas um marxismo de botequim. E um reducionismo típico de nosso tempo é identificar todos os que são contra as pautas das esquerdas - que tem incluído desde a defesa de índios até questões de comportamento sexual - dentro de um mesmo rótulo chamado "conservadorismo". Desta feita, o Alckmin e o Feliciano parecem ser parte de um mesmo e terrível grupo de agentes de Wall Street.

Uma análise bem feita do conservadorismo brasileiro, contudo, identificaria que existem duas faces deste comportamento conservador. Uma delas reflete sim o interesse das classes altas, da haute finance, com um perfil de liberalismo econômico e de autoritarismo social. É o conservadorismo que marcou nossas elites em seu projeto de modernização conservadora, que nos levou ao Império, à República, ao nacional-desenvolvimentismo, ao regime militar e à agenda liberal dos governos Collor e FHC. Este, contudo, costuma se situar ao centro no espectro político: gosta de pautas progressistas - os militares aprovaram o divórcio no Brasil - e se apresenta como uma elite ilustrada e tolerante, ainda que seja capaz de apoiar a escravidão ou a repressão violenta dos movimentos sociais.

O conservadorismo mais radical no Brasil não está nas classes mais altas, mas nas mais baixas. É a expressão da busca dos mais pobres por algum grau de estabilidade, em um contexto social no qual mudar pode significar perder o pouco que se tem. Tivessem os ilustrados de hoje relido Euclides da Cunha, encontrariam estas esclarecedoras afirmações:
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. (...) Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. (...) Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter sido criança. Salteou-o, logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas no sertão. Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. É um condenado à vida. Compreendeu-se envolvido em combate sem tréguas, exigindo-lhe imperiosamente a convergência de todas as energias. Fez-se forte, esperto, resignado e prático.
O conservadorismo dos mais pobres, que leva ao apoio eleitoral a fenômenos como Russomanno, Ratinho Jr, ou mesmo ao lulismo na acepção de André Singer, é um reflexo desta condição catastrófica descrita acima. Não é um conservadorismo de dominação, mas sim um conservadorismo de defesa. Combatê-lo pode significar um adesismo a um projeto de dominação aos moldes da modernização conservadora, como nos lembra o sociólogo Jessé Souza.

Os agentes sociais de junho
Assim sendo, podemos definir a onda de manifestações de junho como a confluência de fenômenos sociais paralelos:

  • Desde a eleição de Lula em 2002 a vanguarda do movimento social passa por um longo processo de reorganização, do qual o Movimento Passe Livre é apenas uma parte. Enquanto sindicatos e entidades estudantis aderiram ao novo governo, novas instâncias de movimento se organizaram, em torno de manifestações de perfil comportamental, como a Marcha do Orgulho Gay, a Marcha da Maconha e a Marcha das Vadias. Esta nova vanguarda, afastada da burocracia sindical e livre das amarras dos ativistas da geração anterior, cooptada no PT e no PCdoB, não se degenerou nas amarras do poder, mas se vinculou a pautas pouco populares, vinculadas especialmente a questões de comportamento - gênero, homossexualidade, aborto e drogas, especialmente.
  • Ao mesmo tempo, uma massa de pauperizados ascendeu a um novo patamar de consumo, tornando-se aquela que ficou conhecida como a nova classe média. Com novas oportunidades abertas pela maior formalização do trabalho e pela expansão da renda salarial, sente na pele os limites das políticas públicas de educação, saúde e transporte público, que não estão preparados para dar conta do excedente de demanda que esta população traz. Os sinais de cansaço desta população se fizeram sentir nas eleições de 2010, quando as ambiguidades da candidata Dilma em relação ao aborto levaram a eleição ao segundo turno, e em 2012, quando outsiders como Rusomanno e Ratinho Jr sacudiram a polarização PT x PSDB nas eleições municipais.
  • Enquanto ascendida a nova classe média, o preço era pago pela velha classe média, que arcou com a maior carga tributária e a precarização da educação e saúde privada. Eles, e não os ricos, pagaram a conta da redução da desigualdade social.
A dinâmica do processo social
Nas jornadas de junho, nova e velha classe média se juntaram à vanguarda do movimento social, desencadeando as manifestações de massa que todos viram pela TV e pelas redes sociais. Contudo, a pauta levada à rua pela nova e velha classe média entrou em rota de colisão com as crenças da nova vanguarda do movimento social.

Surgiu logo um movimento que podemos chamar de coxinhismo: uma resistência generalizada aos novos lutadores, chamados de "fascistas", "coxinhas", e instados pelos esquerdinhas a "aprender história". O coxinhismo foi uma reação aos gritos de "sem partido" que tomaram as manifestações de 20 de junho, puxados por grupos fascistas e apoiados pela massa de novos ativistas. Ao mesmo tempo, o MPL, liderança informal do movimento de rua, interrompeu a onda de manifestações assim que o reajuste da tarifa de ônibus foi revogado. Instalou-se a contraposição entre a vanguarda do movimento e as duas classes médias. Exceção honrosa ao PSTU, que se recusou a bater de frente com os novos ativistas e se diferenciou publicamente dos black blocs.

Esta contraposição ficou mais evidente durante a Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro. Nela, a nova classe média tomou as ruas para manifestar a sua fé junto com o papa Francisco, que expressou o tipo de liderança que esta população espera dos políticos. Ao mesmo tempo, a vanguarda do movimento partiu para o confronto, com posturas que variaram do simples "não é procissão, é manifestação" à ofensa pura e simples à fé do povo, manifesta durante à Marcha das Vadias.

Movida pelo mito ideológico do conservadorismo, a vanguarda do movimento acredita que, ao atacar a Virgem Maria, atacava a burguesia. Ledo engano: em uma espécie de marxismo às avessas, estavam batendo de frente com o proletariado. Repetiam assim o equívoco do jacobinismo florianista durante Canudos: ao atacar Antônio Conselheiro, imaginavam defender o povo, mas o estavam massacrando.

A frente única que se reuniu em junho voltou a separar após julho. A velha classe média voltou ao colo da oposição tucana. A nova classe média retraiu-se e pouco a pouco volta a apoiar o governo Dilma. E o movimento social encastelou-se em ações de vanguarda que se tornaram conhecidas por black blocs. Estes desencadearam uma dinâmica de isolamento similar à que sofreram as Brigadas Vermelhas na Itália e o grupo Baader-Meinhof na Alemanha, como bem descreveu Norbert Elias:
Hoje, de novo, os mais radicais entre os grupos que estão alienados do Estado, o grupo Baader-Meinhof e seus sucessores terroristas, também declaram que o Estado Alemão existente já é um estado fascista, que oprime os grupos inconformistas com a ajuda de juízes tendenciosos, cassetetes policiais, uma imprensa que instiga o ódio e outros meios de violência. Hoje, de novo, poderosos grupos dominantes aproveitam os atos de violência dessas minorias como uma ocasião para usar todos os meios do Estado e a violência verbal contra grupos e indivíduos pelos quais sentem antipatia.
Para onde vamos?
O movimento de junho continua a sofrer com a falta de uma liderança que o represente. Após a tomada das ruas em junho, a insatisfação social permanece difusa e sem uma expressão política clara. Os black blocs não representam a frente que se formou em 17 de junho, mas apenas uma parcela de sua vanguarda.

Por outro lado, soam risíveis as tentativas de captura deste movimento pelos diversos partidos, os mesmos que legitimaram Donadon. Das lideranças políticas existentes, a única que tem tomado alguma iniciativa, tímida e ambígua, é o governo Dilma. O governo tucano de SP vem usando as manifestações para legitimar uma nova agenda liberal descolada das demandas sociais, atendendo aos anseios da velha classe média.

Falta uma expressão da pauta política da nova classe média. Esta ainda não tem uma liderança que a represente. Na falta de outra, fica com Lula e Dilma, mas este vínculo é cada vez mais frágil.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Conservadorismo à brasileira

De uns tempos pra cá a esquerda tem combatido duramente um monstro sem rosto, chamado conservadorismo. Se tem uma coisa que me faz desconfiar são essas palavras amorfas: conservador, elite, povo, progressista... Amorfas porque podem significar qualquer coisa. E, principalmente do ponto de vista da esquerda, porque são expressões sem um caro caráter de classe.

Explico: esquerda que se preza não luta contra o conservadorismo. Luta contra o capitalismo, um sistema econômico bem definido. Isso significa que a esquerda que se preza defende os interesses dos mais pobres e combate os ricos. Quando a conversa da esquerda sai da dicotomia rico x pobre, sem justificar por uma revisão teórica ou concessão tática, desconfio. Algo está errado.

Vejamos: qual o conteúdo desse conservadorismo tão atacado? Basicamente, uma pauta moral religiosa e um projeto de vida individualista. Ou seja, uma combinação da rejeição de comportamentos ditos imorais - drogas, aborto, casamento homossexual - e uma certa resistência a greves, especialmente de metrô, escola e posto de saúde. Bem em geral, superficialmente, é isso.

Agora a pergunta: qual a classe social que se encaixa no perfil acima? Se você respondeu "burguesia", errou. A burguesia brasileira não se caracteriza nem pela religiosidade nem por uma moral de cunho cristão. Sim, projetos de vida individualista são a praia deles. Mas não há resistência às drogas, ao aborto ou à liberdade sexual. Basta ler revista de fofoca.

Se responder "nenhuma", você estará igualmente errado. Na verdade, a descrição acima corresponde aos "batalhadores" de Jessé Souza. Neles, este perfil de conservadorismo é uma espécie de defesa contra as dificuldades da vida, que colocam o risco da miséria na ordem do dia.

Em tempos nos quais as favelas aplaudem um papa, fica uma provocação: em sua luta contra o conservadorismo, estaria a esquerda alinhada aos ricos para combater os pobres?

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Saúde

Têm razão os que dizem que os problemas da saúde pública no Brasil não se resumem à falta de médicos nas regiões de menor IDH. Têm razão os que dizem que os médicos são sim parte do problema.

A saúde pública universal custa caro, por três motivos: o alto preço da tecnologia médica, as liminares que obrigam o SUS a custear remédios caríssimos, e o custo do médico. No caso brasileiro, some-se a má gestão e a corrupção.

Desde a implantação do SUS em 1990, o sistema pouco têm evoluído. Institucionalmente as soluções estão lá. Mas na prática faltam as transferências federais, a tabela SUS não é reajustada, e o dinheiro que deveria ir para a atenção básica se perde em projetos propaganda: farmácia popular, Samu, Ame, Ama etc.

Mas sim, a oferta de médicos ajuda a piorar o problema. E isto começa na formação: uma das faculdades mais caras do país, o curso atrai uma elite social com elevado padrão de vida e raríssimas ocorrências de consciência social. Esta elite busca manter ou elevar seu padrão original, apostando na escolha de especialidades que melhor remuneram. O resultado são as distorções de mercado que vemos: falta de médicos nas redes básicas, atendimento decadente nos planos de saúde...

Diante deste cenário, o papel do Estado é corrigir as distorções. Abrir o mercado é uma iniciativa. Não resolve a saúde pública, mas ataca um de seus problemas estruturais. Falta atacar a qualidade da formação, fazendo valer o alto custo dos cursos para as famílias e o Estado.

Claro que nada é suficiente sem uma política estruturante para a Saúde, coisa que não vemos há mais de vinte anos, para atacar o déficit de gestão e a falta de transparência que permeia o sistema. A Saúde está tão prejudicada que falta até um caso municipal de sucesso, como é Foz do Iguaçu para a Educação. O que temos são ações pontuais, perdidas e isoladas.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Uma nova estrutura social

Este post inicia uma série de análises não sistemáticas sobre as diversas classes sociais do Brasil atual, e os seus impactos no modelo de desenvolvimento que teremos daqui para a frente

Desde o início das jornadas de junho, conhecidas como Revolta da Salada ou do Vinagre, entrou em debate sobre qual seria a "base social" deste novo movimento. O foco principal foi a classe média, alvo de críticas ou elogios baseados sempre em uma visões distorcidas e ideológicas, que pressupõe uma correlação mecânica e imediata entre renda e visão de mundo.

Fato é que estamos vivenciando nos últimos anos um profundo processo de reorganização social. Este processo não estaria relacionado apenas a políticas públicas, mas a uma combinação de reorganização das instituições econômicas e fortalecimento político das redes de proteção social. O que vou apontar aqui tem sido amplamente estudado por diversos autores:

  • Marcelo Neri, atual presidente do IPEA, estudou os padrões de mobilidade entre faixas de renda
  • André Singer tratou do realinhamento eleitoral que conduziu a base da pirâmide social para o apoio ao governo de esquerda
  • Bolivar Lamounier e Jessé Souza, com abordagens diferentes, trataram dos aspectos socioculturais da nova classe ascendente
  • Ruy Braga apresenta uma visão crítica do processo, apontando novas relações de precarização do trabalho
Aglutinando tudo o que estes caras dizem, temos que nos últimos anos toda uma população que sempre esteve afastada dos níveis mínimos de consumo e cidadania começou a melhorar de vida. É uma melhora pequena, mais relacionada ao crescimento da renda e do padrão de consumo, mas que abriu o leque de expectativas destas pessoas. Elas agora anseiam por mais - especialmente educação, que está diretamente relacionado à abertura de novas oportunidades de trabalho. Estes são a chamada "nova classe média" - concordo com Jessé Souza que esta classificação não condiz com a realidade, e melhor seria chamarmos de "nova classe trabalhadora".

A ascensão desta pessoas está relacionada a um padrão de desenvolvimento econômico que está se esgotando - expansão do consumo interno, estimulada pelo crédito acessível. Com a redução de ritmo desta ascensão, a pressão por acesso a melhores serviços públicos relacionados à oportunidades de trabalho - principalmente educação, saúde e transporte - tende a ser crescente. Ao mesmo tempo, buscam uma nova relação com o Estado, a política - do clientelismo pontual para satisfação de necessidade para uma visão do direito às condições básicas de sobrevivência - e a polícia.

Isso explica o apoio da maioria às manifestações, a crítica à repressão policial, e até o apoio popular ao plebiscito. No imaginário desta nova classe ascendente, o sucesso é resultado do esforço próprio. Jessé Souza aponta que esta população sobreviveu às margens da cidadania sempre às custas do trabalho duro e de um elevado nível de sacrifício - legitimado por uma rede de apoio familiar e uma consciência religiosa não apenas protestante/neopentecostal, mas também do catolicismo popular. Logo, ela não vê o bolsa família como um favor, mas um direito à sobrevivência. Por ser um direito, também não sente dívida de gratidão com este ou aquele político, mas quer influenciar o debate público, como fazem desde sempre as classes médias urbanas - liberais e conservadoras - e as elites.

Até agora, a expressão política desta nova classe é um enigma, justamente por ser novo. Ela já apoiou o petismo, mas vem dando trabalho desde 2010, quando as bandeiras programáticas do PT que afrontavam a sua consciência religiosa levou Dilma para o segundo turno. Fenômenos como Ratinho Jr em Curitiba e Russomanno em São Paulo são demonstrações de que este eleitorado quer uma expressão política para chamar de sua, que não seja nem o petismo nem a direita tradicional.

A expressão política desta população significará também qual será o drive de políticas públicas ao qual eles darão suporte. É difícil prever se eles darão suporte a uma versão tropical do Tatcherismo - como acredita Bolivar Lamounier - ou se buscarão herdeiros do lulismo de Singer, ou se vão atrás de uma terceira via. O que está claro são seus interesses: eles querem se afastar o máximo possível dos limites que separam a cidadania plena da vulnerabilidade social, situação em que viveram todos estes anos.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Dilma: Inocêncio III ou Bonifácio VIII

Depois de ouvir o pronunciamento da presidente Dilma, eu havia concluído que ela adotava a estratégia do papa Inocêncio III: dividir os insatisfeitos, atraindo os radicais e compondo com quem era possível compor.

Agora, duas semanas depois, Dilma parece mais com Bonifácio VIII, que viveu dois séculos depois. O momento dos dois papas era similar e a estratégia parecida. A diferença é que Bonifácio VIII fracassou.

O papa Bonifácio VIII tinha à sua frente o rei Felipe o Belo de França, um secularista de deixar Jean Willys e Leonardo Sakamoto no chinelo. No enfrentamento, o rei chegou a prender o papa, que só foi libertado por ação da nobreza romana.

A derrota de Bonifácio VIII significou a submissão da Igreja ao reino francês, com a transferência da sede papal para Avignon. Foi um período de crise para a fé católica, retratado no romance "O nome da Rosa", de Umberto Eco.

Neste momento Dilma se encontra tão acuada quanto Bonifácio VIII. Que o resultado não seja similar.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Plebiscito, referendo e o golpe dos fisiológicos

Após a reação perplexa dos políticos à invasão das ruas no Brasil, que os levou a votar alguns projetos contra si próprios, começa-se a se articular um golpe que se pretende contra a Dilma, mas que na verdade é contra eu e você. O golpe se iniciou no recuo da proposta de Constituinte para a reforma política, e vai ganhando a forma do esvaziamento do processo plebiscitário.

Senão vejamos: hoje o Painel Político da Folha de S. Paulo nos informa que o presidente da Câmara propõe uma alternativa ao plebiscito proposto pelo governo: uma comissão que elabore uma proposta a ser submetida a referendo em 2014. Um enrolation.

Não que o plebiscito da presidente seja algo excelente. A cada dia que passa fica claro que a proposta do governo deve se reduzir a uma consulta sobre voto em lista e financiamento público de campanha. Duas medidas que, sozinhas, podem tornar nosso ambiente institucional menos democrático ainda.

O que eles estão fazendo é ganhando tempo, enquanto se protegem do povo em estado de alerta. Querem reduzir suas concessões ao mínimo, enquanto esperam a poeira baixar. Nisto se junta a oposição, o governo, os fisiológicos e até o probo juiz Gilmar Mendes, o BFF do Daniel Dantas.

Para quem foi às ruas porque não se sente representado por ninguém que aí está, o que interessa é um amplo processo de mudança institucional. Uma vez que a Constituinte perdeu fôlego, que seja um processo plebiscitário, mas com o máximo de tópicos possível. Caso contrário, estaremos reclamando de falta de representatividade por muito tempo ainda.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Corrigindo o rumo

Para informação geral: uma vez que o processo democrático desencadeado em junho vai encontrando seu rumo normal, entendo que as postagens diárias sobre o tema tornam-se desnecessárias. Voltaremos ao tema sempre que necessário, mas estou pensando em produzir outros conteúdos, mais ligados ao desenvolvimento do Brasil.

domingo, 30 de junho de 2013

As manifestações e a Economia

Este blog foi criado para falar de economia. Ficou esquecido por dois anos porque ninguém liga para economia. E foi retomado porque precisava externar uma reflexão sobre este grande sacolejo que o Brasil está passando, e que tem a ver com mais de dez anos de reflexão. E agora acho que cabe falar da relação entre democracia, as manifestações que estamos vendo e a Economia.

Basicamente, boa parte do debate sobre democracia e desenvolvimento econômico se divide entre duas correntes, aqui apresentadas de forma bem genérica:

  • Um pessoal da chamada economia neoclássica costuma identificar uma relação direta entre democracia e livre mercado. Hellen Milner, da Universidade de Princeton, chegou a produzir uma interessante revisão bibliográfica que aponta a existência desta correlação na teoria, mas não em pesquisa empírica. Contudo, este é um ponto de vista forte na ortodoxia econômica e não deve ser desprezado. Quem quiser ver uma versão pós-crise de 2008 desta corrente, leia O fim do livre mercado, de Ian Bremmer.
  • No outro extremo autores desenvolvimentistas costumam dizer que pelo contrário, a democracia pode atrapalhar o desenvolvimento econômico de países subdesenvolvidos. Alice Amsden, do MIT, chegava a interpretar o crescimento no Sudeste Asiático como resultado da imposição de uma disciplina sobre o empresariado local por meio do Estado - expressa em trabalhos interessantes como A Ascenção do "Resto". Outro autor defensor de abordagem similar é Ha-Joon Chang, um economista coreano autor de textos sobre desenvolvimento como Chutando a Escada e Os Maus Samaritanos.
Mais recentemente uma outra corrente vem ganhando força no debate sobre a correlação entre democracia e desenvolvimento. Com base na teoria de Schumpeter e na modelagem da teoria dos jogos, entre outras referências, autores como Douglass North, Amartya Sen e Joseph Stiglitz - todos Prêmios Nobel em Economia - vem trabalhando a relação entre instituições e desenvolvimento. Para estes, as instituições do mercado são moldadas com base em uma "barganha cooperativa" entre os setores da sociedade com maior poder de fato em mãos. Logo, o mercado em uma dada sociedade reflete não a alocação mais eficiente de recursos conforme a teoria neoclássica, mas a maximização dos ganhos destes setores mais poderosos. Neste sentido, a democracia, por diluir o poder entre diversos agentes da sociedade, levaria este processo de barganha a um nível mais próximo do mercado eficiente.

Nesta linha, um trabalho bem simples de entender e que, ao meu ver, amarra bem este raciocínio é o livro Por que as Nações Fracassam, de Daron Acemoglu (MIT) e James Robinson (Harvard). Para eles, mais importante do que a existência ou não de mercados eficientes, o desenvolvimento de um país está relacionado a quão inclusivas são as instituições econômicas e políticas deste país. Instituições inclusivas seriam aquelas que permitem o acesso a determinados direitos econômicos a um amplo conjunto de cidadãos, e não a uns poucos magnatas. Instituições extrativas, por sua vez, submetem toda a economia ao interesse de alguns poucos beneficiados. Neste caso, a economia não avança e a população é pobre. No outro, como a criatividade e a iniciativa são protegidas e premiadas, o país avança e a população enriquece.

O mais interessante no modelo de Acemoglu e Robinson é que para eles instituições inclusivas não são construídas da noite para o dia, mas se desenvolvem por meio de um longo "círculo virtuoso da inclusividade". Este processo se desencadeia quando, em uma determinada conjuntura crítica que provoca uma mudança institucional - por exemplo, uma Revolução - estabelece-se uma situação de equilíbrio de poder na sociedade por meio do qual um grupo não consegue impor sozinho sua vontade sobre os demais. A partir daí, a sociedade passa a tomar medidas para se proteger sempre que um engraçadinho tenta tirar proveito dos outros. Na reação da sociedade a cada avanço - de grupos empresariais, políticos, sindicatos etc. - as instituições se tornam mais e mais inclusivas.

Penso - e isto foi uma descoberta interessante que fiz durante o mestrado e estou tentando explorar melhor no doutorado - que vivenciamos um círculo virtuoso de inclusividade no Brasil desde o fim da ditadura militar. Desde este momento, atores sociais vem interferindo no debate político de forma a assegurar que a pauta do momento seja levada a cabo, mas dentro de certos limites. Assim foi com o combate à inflação: a sociedade deu apoio a uma agenda liberal voltada à estabilização, mas houve resistência contra determinadas medidas arriscadas, como a privatização da Petrobras e a proposta de reforma trabalhista de Fernando Henrique. O mesmo aconteceu com o governo Lula: a sociedade demandou a distribuição de renda, mas vem resistindo a que se coloque a estabilidade em risco. E quem disse isso antes de mim foi o Instituto Brasileiro de Economia, da FGV, em uma de suas cartas.

Quando os manifestantes foram às ruas contra o aumento da passagem do transporte público, muitos viram o curto prazo, e chamaram qualquer revogação do aumento de populismo. Olhando no longo prazo, isto pode representar uma barreira de proteção sobre o orçamento público, para que não se privilegie tanto desonerações que interessam ao grande capital em detrimento dos serviços sociais. E a alocação dos royalties do petróleo na educação e na saúde também pode ter resultados benéficos no desenvolvimento futuro do Brasil.

Ainda que nos frustremos com o curto prazo, imagino que o que estamos vendo agora nos ajudará a ser um país melhor no longo prazo.

sábado, 29 de junho de 2013

Era uma vez a democracia interna do PT

Quando tirei meu título de eleitor, em meados dos anos 1990, achei por bem filiar-me a um partido para ter uma atuação política mais efetiva. Tornei-me petista. E o que mais me impressionou era que o partido tinha um ambiente vivo de debate e atuação política, independente de ser ou não período de eleições. Logo que cheguei, perguntei pela próxima reunião e fui convidado para participar de uma discussão do Diretório Municipal - era uma cidade pequena. Ali, todos os presentes tinham voz, e o que mais impressionava era como um operário ou um líder comunitário poderia influenciar os rumos do partido. Saí do PT dois anos depois e, quando tentei voltar, já na eleição que levou Lula à presidência, isto já não era mais possível - talvez por isso eu esteja sem partido desde então.

Os anos 1990 foi o período que construiu o processo de transformação organizacional que levou o afastamento do PT de suas bases - e por consequência a onda de protestos que estamos vendo hoje, com a consequente queda de popularidade da presidente Dilma. Não preciso me alongar para dizer que o PT foi um partido construído de baixo para cima, mas talvez precisemos entender melhor o seu processo de burocratização. Parte da análise que faço aqui é vem do acúmulo de discussão da esquerda petista, mas as conclusões são diferentes, e vocês entenderão porque.

A grande novidade do final dos anos 1980 e início dos 1990 no cenário político brasileiro foi que o PT se tornou uma alternativa eleitoral viável, capaz de pelo menos polarizar uma eleição nacional. Muito da polarização semi-estúpida que testemunhamos nas mídias sociais entre petismo e anti-petismo foi gestada neste momento. Colocado como uma alternativa popular e de esquerda, o partido tornou-se um aglutinador daqueles que defendiam mudanças e, por outro lado, concentrou do outro lado o conservadorismo, tanto de elite quanto popular (e quem quiser saber mais recomendo este livro do André Singer).

Do ponto de vista organizacional, este fenômeno atraiu ao PT um conjunto de simpatizantes não necessariamente vinculado à luta social, mas a uma identificação difusa com uma pauta de mudança - ética na política, nacionalismo, politicas sociais e não muito mais que isso. Este conjunto de simpatizantes serviu de motor para um processo de consolidação de uma maioria na direção, por meio da formação de uma nova militância disciplinada e afastada dos debates internos. Isto se deu principalmente por meio da filiação em massa e da formação de chapas para a direção lideradas pelas principais figuras públicas do partido.

Para filiar-se ao PT, o sujeito deveria ter sua filiação aprovada por diretório municipal e contribuir anualmente com a legenda. Neste período, as aprovações de novos filiados passaram a ser quase automáticas, sem muita discussão. Por outro lado, o pagamento das contribuições, cada vez mais baixas e menos representativas nas finanças do partido, passou a ser feito no dia da eleição de delegados para os encontros estaduais e nacionais. Esta combinação de fatores desenvolveu uma massa de militantes acríticos, sem formação política e mobilizados apenas em períodos eleitorais. Nestes mesmos anos 1990 presenciei ônibus de filiados mobilizados para votar em determinadas chapas - inclusive da esquerda petista - e parlamentares "quitando" a contribuição do filiado para que ele pudesse votar.

Some-se a isso o acesso que o partido passou a ter a recursos com o crescimento de sua base parlamentar. A contribuição compulsória do parlamentar ao partido permitiu a formação de toda uma nova geração de burocratas, fundamentada nesta base de militantes amorfa. Ativistas novos incorporados a posições de liderança do partido conseguiam rapidamente um salário equivalente a R$ 4.500 em valores de hoje (R$ 1.500 atualizado pelo IPCA desde 1996) sem ter necessariamente qualificação profissional para encontrar um emprego similar no mercado de trabalho. O resultado foi o desenvolvimento de uma dependência financeira que foi aos poucos degenerando essa liderança.

Ao mesmo tempo, o partido precisava manter uma retórica de combate para manter aglutinada a militância e anular as críticas de esquerda petista quanto ao caminho que o partido estava tomando. Por isso, a tese mais coerente do ponto de vista da moderação programática que o PT estava imprimindo a si mesmo, Por uma Democracia Republicana, liderada por José Genoino, foi minoritária no Congresso do PT de 1999. A direção majoritária preferiu aprovar uma resolução fluida a favor do socialismo que aplacava os ânimos das correntes de esquerda, mas mantinha coesa a base partidária. Depois o grupo de Genoino uniu-se à maioria e formaram o Campo Majoritário, que comanda o partido até hoje, dessa forma que você está vendo.

A aprovação do Processo de Eleição Direta para a direção do partido e a eleição para o governo federal consolidou a burocratização. Os espaços de discussão passaram a ser cada vez restritos e desnecessários, as lideranças tornaram-se burocratas de governo. Os setores mais radicais da esquerda petista romperam e ajudaram a formar o PSOL. E formou-se aquilo que André Singer chamou de As Duas Almas do PT: um discurso moderado para fora, e um discurso radical indefinido para a base acrítica de militantes, mantendo-a mobilizada contra um suposto ataque das elites ao governo do povo.

O que estamos vendo agora, com um PT perplexo diante de manifestações que o questionam de frente, é efeito colateral deste processo. Afinal, a base disciplinada e que defende qualquer porcaria que o governo faça impede o partido de sentir o real pulso da situação política, e reduz sua capacidade de reação. São dez anos de governo, nos quais o partido se engessou e perdeu sua capacidade de criar. Paga agora o preço. Pelo menos nesta história eles não vivem felizes para sempre.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

A falta de democracia dos partidos

Já coloquei aqui um testemunho pessoal sobre um movimento de caráter apartidário que presenciei há mais de dez anos. De fato, a resistência aos partidos políticos só faz crescer desde os anos 1990, e não é um fenômeno das mobilizações recentes. A cantilena em defesa dos partidos é tão velha quanto - eu mesmo a repeti várias vezes. O fato é que os ativistas políticos dos últimos anos têm procurado outros meios - ONGs, trabalho voluntário.

Uma das razões é a ausência de efetiva democracia partidária no Brasil (outra pode ser lida aqui). Nossos partidos muitas vezes não passam de estruturas eleitorais, sem vida interna nem espaços de debates fora dos anos de eleição. Não existe a prática das prévias, e muitas decisões são tomadas pelas cúpulas. Nas eleições de 2006, o PSDB pensou em realizar uma prévia, mas não conseguiu por não ter um cadastro efetivo dos filiados.

A legislação eleitoral não avança muito neste sentido. Ela assegura ao filiado o direito a se candidatar a cargos eleitorais ou de direção partidária, e obriga que os candidatos sejam aprovados em convenção. Na prática, essas convenções não passam de eventos festivos para aclamar decisões anteriores - já vi convenção aprovar candidato e o partido definir coligação depois.

Na prática a única forma de um filiado influenciar a cúpula é se elegendo a um cargo público. Ainda assim, pode enfrentar dificuldades sérias - o Russomanno tentou bater de frente com o Maluf no PP e perdeu.
Ajudaria muito se os direitos que os partidos prevêem aos filiados em seus estatutos fossem realmente assegurados pelo Estado - afinal estão registrados no TSE.

Na ausência de um efetivo espaço de debate e deliberação democrática dentro dos partidos, ficam neles os arrivistas, e saem os ativistas. Perde a democracia representativa.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Repensar a polícia

O tamanho das manifestações de junho foi amplificado em reação à violência policial verificada nas ruas de São Paulo no dia 13 de junho. Contudo, esse é o recado menos ouvido das ruas. Sintomático disso é a afirmação de Márcio Lacerda, prefeito de Belo Horizonte, de que a polícia havia "prendido pouco".

Ontem um suposto vândalo foi preso por ter em casa um livro sobre a História do movimento punk. Nesta semana o Bope fez mais uma incursão violenta em favela, no Complexo da Maré, Rio de Janeiro. Ambas são práticas de um policiamento baseado no terror, que tem sido a praxe da Segurança Pública no Brasil desde a ditadura.

Pinheirinho, Belo Monte, Vigário Geral. Três exemplos de como a polícia faz na periferia todos os dias o que fez no centro de São Paulo em 13 de junho. Três exemplos de uma estratégia baseada no terror sobre o mais fraco.

E as posturas do Ministro da Justiça e do governador do Distrito Federal mostram que não há diferenças partidárias quando se trata do terrorismo de estado exercido por meio das polícias.

Esta polícia violenta e pouco estratégica no combate ao crime é um elemento chave de uma microfísica do poder no Brasil. Por um lado, ela se reproduz por meio da seleção dos perfis de policiais mais adequados a este formato. É comum policial fazer treinamento nós Estados Unidos e voltar impressionado com o armamento da SWAT - e não com as técnicas forenses de investigação. Corrupção e truculência fazem parte do DNA desta organização.

Por outro lado, esta polícia atende aos interesses de uma classe média e alta que quer distância da "gente diferenciada" das periferias. Mais do que combater o crime, a violência policial conta com endorsement de toda uma classe para a proteção de seu modo de vida. Isto inclui seus delitos - o que explica porque o tráfico de drogas não é combatido pra valer.

Contudo, há sinais de mudança. Tanto Belo Monte quanto a operação na Maré tiveram repercussão via redes sociais. Afinal, esta nova classe média - os batalhadores de Jessé Souza - cresceram, conquistaram algum acesso à cidadania, e agora querem respeito.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

A democracia se defende

Nas semanas que se passaram, em diversos momentos levantou-se a dúvida sobre o risco da democracia. Quando os governos decidiram baixar o sarrafo nas manifestações, quando grupos de inspiração pouco democrática tentaram atacar fisicamente partidos políticos; ou nas idas e vindas da Constituinte exclusiva, cada um desses momentos foi interpretado como um risco à democracia.

E contudo, olhando para trás, o que vemos é o vigor do processo democrático. As manifestações não puderam ser impedidas por ninguém - nem pela CBF, cujo presidente é um conhecido torturador da ditadura. Os governos e, desde ontem, até o Legislativo, foram obrigados a ceder. E o que temos neste momentos é um amplo processo de transformação institucional.

Eu disse lá atrás e repito agora que nossa cultura de participação política cidadã precisa evoluir para que a democracia cresça. Mas é inegável que, além de instituições democráticas fortes, eleições livres e alternância de poder, o Brasil conta com mecanismos de segurança que defendem a democracia dos riscos.

Um deles é o fato de que nenhum grupo político ou social tem poder suficiente para afastar seus adversários do jogo democrático de forma definitiva. Nem o partido no poder, nem a oposição, nem o Judiciário, nem as ruas, nem o poder econômico, nem ninguém. Nem mesmo a grande mídia.

Este equilíbrio de poder de fato obriga os atores políticos a construírem acordos para sobreviver. E o sinal de que um acordo é bom é se ninguém sai satisfeito totalmente com ele.

Outro aspecto é a memória da ditadura e a reação a ela. Toda vez que há sinal de risco para a democracia, a sociedade reage. Foi assim no dia 17, quando as ruas foram tomadas em resposta à brutalidade policial do dia 13. Não foi uma resposta com medo, mas com uma coragem tal que acuou os governos.

Por fim, um aprendizado que deve ficar desses dias: os políticos funcionam melhor quando acuados. Quando as pessoas tomaram as ruas, a pauta política melhorou: saiu dos conchavos palacianos e incorporou as demandas da sociedade. Ontem a Câmara aprovou uma destinação dos royalties do petróleo que havia sido rejeitada meses atrás.

E a democracia brasileira termina junho melhor do que começou.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Do plebiscito

A presidente Dilma avançou em sua estratégia de jogar com as mobilizações. Desta vez, sacou uma velha proposta do PT - a Constituinte exclusiva para aprovar a reforma política - embalada por um plebiscito. Desde ontem esta proposta está embaralhando o debate público.

Vou descartar aqui as abordagens jurídicas positivistas à Kelsen - os constitucionalistas estão se esbaldando nisso. Minha reflexão é sociopolítica. Outro dia, ao avaliar o pronunciamento da presidente, disse que ela estava dividindo os manifestantes entre os que podem ser atraídos e aqueles com quem não há acordo. O plebiscito é mais um passo neste sentido.

Os oposicionistas de sempre - com destaque à entrevista de Serra ao Roda Viva - reagiram negativamente à proposta. Os fisiológicos estão quietos, talvez se manifestem hoje. E muitos dos manifestantes reagiram positivamente, ainda que entre descrentes e perplexos.

Neste sentido, Dilma já está ganhando. Pois se não houver plebiscito, o custo cairá sobre os políticos tradicionais. Se houver, será vitória dela. E aos que questionam a necessidade de um plebiscito, um argumento que se alinha àos anseios das ruas: você é contra que o povo debata e decida?
Alguém disse isso ontem no Facebook: Dilma deu um truco.

Update: Sei das dificuldades jurídicas, mas abrir mão da Constituinte é um passo atras perigoso. O plebiscito pode se resumir às propostas perigosas que andam circulando por aí - eu pessoalmente votaria contra todas elas:

  • voto em lista - sem democracia interna nos partidos seria golpe das cúpulas
  • voto distrital - encheria o Congresso de coronel local e tiraria deputados ligados a causas extraterritoriais
  • financiamento público - é um absurdo dar mais dinheiro público aos partidos sem nenhum controle

A reforma política que interessa é aquela que estimula a participação popular, ou seja, permite que eu e você possamos influenciar os partidos aos quais venhamos a ser filiados e contribuir inclusive financeiramente com as candidaturas que temos maior aderência.

domingo, 23 de junho de 2013

De coxinhas e maisenas

Entrevistador: Analista de Bagé, o senhor é ortodoxo?
Analista de Bagé: Tão ortodoxo quanto caixa de maisena
(Luís Fernando Veríssimo)

Desde quarta-feira, o incrível movimento de massas que tomou as ruas se viu dividido. De um lado, manifestantes experientes, que acusam os novos de serem "coxinhas", uma expressão que se consagrou por definir um tipo paulistano, pelo menos na descrição de Leonardo Rossatto Queiroz. Do outro, os novos manifestantes, que passaram a ser submetidos a uma onda de sermões daqueles que se apresentaram como experientes e insones - "nós nunca dormimos".

Venho acusando desde então que ninguém está entendendo nada, e um dos motivos é uma visão demasiado ortodoxa dos fatos que estamos presenciando. "Tão ortodoxa quanto caixa de maisena", diria o Analista de Bagé. Ortodoxia é uma coisa que só serve na Igreja - e mesmo assim só se for no espírito dinâmico apresentado por G.K. Chesterton, e não como tradicionalismo vazio de alguns. Ortodoxia na análise social mais atrapalha que ajuda.

Gente tão ortodoxa quanto caixa de maisena percebeu que a pauta de quem aderiu às manifestações não era a mesma deles, que estavam na luta desde antes, quando ninguém notava. "Nós nunca dormimos", dizem, como quem consome mais de dez xícaras de café para ficar acordado.

Os maisenas não entenderam que eles são uma espécie de relógio quebrado, parado, que marca a hora certa duas vezes ao dia. Não foi o relógio que acertou, foi o tempo que coincidiu com o relógio. As manifestações pelo passe livre coincidiram com uma insatisfação latente em toda uma camada na sociedade, e a fizeram explodir. Diante disso, os maisenas tinham duas opções: entendê-los para liderá-los, ou tentar encaixá-los em sua ortodoxia. Optaram pela segunda escolha, e quebraram a cara.

Agora os maisenas reagem como o menino perna de pau que é dono da bola: depois de perder o jogo, pega a bola e acaba com a brincadeira. Saem a dizer que os "cozinhas" deveriam aprender com a História, acusam-nos de fascistas, anti-partido, blá, blá, blá. Sono. O problema não está nos coxinhas, mas em quem não os compreende.

Toda a memória reunida nos partidos de esquerda, que leem Trotsky, Lenin, Nahuel Moreno, parece não servir de nada nessas horas. Para os grupos da ultra-esquerda, bastava trocar a lamentação contra o apartidarismo por uma leitura renovada do Programa de Transição:

É necessário ajudar as massas, no processo de suas lutas cotidianas a encontrar a ponte entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista. Esta ponte deve consistir em um sistema de REIVINDICAÇÕES TRANSITÓRIAS que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado.

Claro que eu não estou interessado na Revolução Socialista, mas quem está deveria reler seus próprios inspiradores. Se não, fica preso às categorias do passado, mais ortodoxo que caixa de maisena. E só para vocês saberem, maisena é ingrediente para produzir coxinha.

Afinal, que insatisfação é essa?
O Datafolha no último sábado mostrou que a maioria dos que estão na rua não é conservadora. Deixa eu repetir: NÃO É CONSERVADORA. Conservadores são apenas 5% dos manifestantes. Mais de 80% defende a democracia. E metade está insatisfeita com a corrupção.

Não adiante ficar perguntando de que corrupção se está falando. Corrupção é um conceito guarda-chuva que abarca a insatisfação das pessoas com a lentidão do estado em atender as demandas da população por conta de um jogo político palaciano muito pouco republicano, especialmente no que envolve o Legislativo. De 2004 a 2010 a vidas das pessoas melhorou, a desigualdade caiu, e as expectativas subiram. Agora as pessoas querem avançar, mas as políticas públicas emperram na incompetência dos quadros técnicos dos municípios, na lentidão para se punir políticos corruptos nos três poderes e três níveis da federação, e na agilidade para se atender a demanda de um Eike Batista.

A própria presidente Dilma se enrolou neste emaranhado, quando interrompeu pela metade sua faxina ética, sem institucionalizar o combate a corrupção e cedendo aos líderes bandidos em troca de uma governabilidade frágil até para aprovar uma medida provisória. Neste sentido, as manifestações podem servir para a presidente dar uma nova guinada em seu governo, servindo de argumento para reduzir ministérios, cortar a alegria da base aliada e inclusive enxugá-la a alguns partidos mais fiéis.

Em dez de maio, o professor e blogueiro Idelber Avelar abria a confidência de um amigo no governo federal: "Minha bronca é com a base do governo nas redes, que aceita tudo, engole tudo, não critica nada. Só piora a nossa situação aqui. Num governo de coalizão, a direita sapateia em cima da gente se não há pressão da base. Na última reunião com o pessoal do [insira aqui um Ministério controlado pela direita, que não vou dizer qual é], eles esfregaram na minha cara: 'não adianta espernear, porque a gente sabe que sua base vai aceitar, sim'"

Pois é. Os maisenas que acusam os coxinhas e dividem o movimento ao invés de entender suas raízes só colocam água no moinho da direita. Entregam os coxinhas à liderança da direita, e fortalecem os fisiológicos dentro do governo. Parabéns, bela revolução vocês estão fazendo.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Dilma e a estratégia de Inocêncio III

Um velho amigo e companheiro militante tinha uma frase que resumia toda e qualquer avaliação de conjuntura: política é resultado. Logo, uma estratégia é boa e ruim se por ela se atingem bons resultados. Por isso, toda e qualquer avaliação do discurso da presidente neste momento é arriscada, porque os resultados não são conhecidos. O que podemos é identificar qual foi a abordagem da presidente e onde ela pretensamente quis chegar.


Optar por um pronunciamento à nação é uma estratégia arriscada. Fernando Collor afundou após um pronunciamento mal pesado e mal medido, considerando a conjuntura naquele momento. Collor optou por conclamar seus apoiadores contra quem pedia o impeachment. Se deu mal.

Dilma fez outra escolha. Ela optou pela estratégia do papa Inocêncio III - que de inocente não tinha nada. O cardeal Lotário de Segni foi eleito papa em um momento crítico da história da cristandade. Movimentos camponeses varriam a Europa condenando o arbítrio dos nobres, a riqueza da burguesia nascente e o poder da Igreja. O Sacro Império Romano Germânico estava dividido entre guelfos, burgueses defensores do primado papal, e guibelinos, nobres alinhados ao imperador alemão. E heresias se misturavam a movimentos que defendiam a reforma da Igreja.

Inocêncio optou por uma estratégia de dividir os conflagrados entre quem estava disposto a compor com Roma e quem não tinha acordo possível. De um lado, reformadores pacíficos como Francisco de Assis e Domingos de Gusmão, que defendiam uma Igreja mais pobre e voltada aos necessitados das cidades. Do outro, grupos hereges como os valdenses e os albigenses.

Dilma está tentando adotar a mesma estratégia, e explorar a heterogeneidade dos manifestantes. Por um lado, condenou o vandalismo com palavras fortes como "arruaceiros" e os setores mais à direita do movimento, que criticam os partidos e pedem o impeachment. Por outro, chamou o movimento passe livre para conversar sobre uma reforma estrutural mais ampla do transporte público nacional.

Os elementos para esta estratégia foram dados pelas redes sociais no decorrer do dia, com setores do movimento acusando os grupos de direita que se uniram às passeatas de fascismo. Desta forma, conformaram-se os dois polos que permitiriam à presidente identificar quem deve ser atraído e quem deve ser combatido. Aqueles que estão criticando o discurso da presidente, pelo menos no que eu vi até agora, são aqueles que ela não esperava atrair para o seu lado.

Entre os indefinidos, a presidente tentou se utilizar da memória da suposta "faxina ética" promovida no primeiro ano de governo para se afirmar como alguém que não tolera corrupção nem mau uso dos gastos públicos. Aliás, fazia tempo que a presidente não apelava a estes discursos.

A presidente também passou alguns recados a quem estava dominando a pauta antes das mobilizações. Afirmou que a cidadania deve ser ouvida antes dos interesses do poder econômico - uma clara referência às disputas de lobbys que afetaram o andamento das MPs dos Portos e das tarifas de energia e aos críticos da sua política econômica - e afirmou que é preciso "oxigenar o sistema político", uma indireta aos partidos da base que tem nos últimos dois anos elevaram o nível da fisiologia.

Por fim, dois pontos: (1) ao dizer que os recursos gastos na construção dos estádios da Copa são de financiamento, a presidente tenta afastar a ideia de que o país está gastando recursos que poderiam ser direcionados a serviços públicos como saúde e educação. E (2) faltou para completar uma reforma ministerial que reduzisse o número de ministério e afastasse os fisiológicos. Esta é uma iniciativa que a presidente precisa fazer logo, para completar o recado dado.

Vai dar certo? Os próximos dias dirão.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Uma insatisfação em busca de significação

O título deste post remonta ao relato que fiz da passeata de segunda-feira neste blog, e volto a ele porque ainda ajuda a nos explicar o que está acontecendo com os nossos jovens. Há uma insatisfação difusa, ainda sem uma cara definida, uma expressão política clara que amalgame esta insatisfação para um foco. Mas agora há uma mudança: as forças políticas tradicionais, que começaram na incompreensão e avançaram para a perplexidade, mudaram agora para o chavão.

Até terça-feira, ninguém entendia nada, e todo mundo admitia isso de uma forma ou de outra. Agora todo mundo acha que entende. Cada um pegou um rótulo pré-fabricado - já falei que no meu caso o único rótulo vermelho que aceito é o red label - e começou a tentar encaixar os fatos em seu próprio estereótipo. Durante esta quinta-feira ouvi que os manifestantes eram comunistas por terem barrado as bandeiras pró-vida e defenderem o fora Feliciano, e que eram fascistas por barrarem as bandeiras do PT, da CUT e até do movimento negro. Afinal o que são os manifestantes?

São uma coisa nova, e não são uma coisa só. São jovens de classe média insatisfeitos, e o ponto em comum acaba aqui. Há insatisfeitos da nova classe média e insatisfeitos da velha. E são jovens. Uma pessoa que tenha 18 anos hoje provavelmente nasceu depois do Plano Real, ou seja, não acompanhou de perto a luta pela redemocratização, a Diretas Já ou o fora Collor. Repetem a fala de Danilo Gentili em seu show "Politicamente Incorreto":

Ah, ela [Dilma] estava ao lado do Genoino e do Zé Dirceu, estava lutando para o meu país ser o que é hoje? Devo a ela o Brasil ser como é? Poxa! Muito obrigado, hein! Você fez um ótimo trabalho!

Veja que a frase acima não é uma rejeição à luta contra a democracia, mas ao estado de coisas atual do Brasil. A geração no poder está acomodada e perdeu a capacidade de criar. Aécio Neves diz isso do PT, mas seu partido também não é um gerador de novidades. O país avançou, tem problemas novos, e ainda estamos discutindo privatização.

O que estamos vendo nas ruas é uma insatisfação antiburocrática. O Movimento Passe Livre, cuja identidade ideológica é mais alinhada a uma certa esquerda tradicional, abriu as portas para uma insatisfação maior, que não cabe no programa da ultra-esquerda. Aliás, não cabe em nenhum programa, nem mesmo no da Rede de Marina Silva.

Dentre os jovens, podemos identificar dois grupos. Um já tem uma experiência de militância, envolvida em mobilizações já existentes como parada gay, marcha das vadias e da maconha. É esta militância mais ligada ao MPL e aos primeiros grupos que se somaram as passeatas contra as tarifas. Esta tem laços mais estreitos com a ultra-esquerda tradicional e aceita melhor certos partidos políticos.

O outro está chegando agora, e se expressa de forma diferente. São estes os que cantam hino nacional, pedem para afastar bandeiras de partidos e movimentos, e trazem para a rua reivindicações de perfil mais conservador. Mas cuidado, a palavra "conservador" gera uma ilusão de ótica em quem a usa de forma tradicional. Se você tende a achar que por detrás dos manifestantes conservadores estão os ricos e poderosos do país, um aviso: estes estão com o governo.

O conservadorismo da massa expressa valores arraigados na chamada "nova classe média" - ou batalhadores, na definição exata de Jessé Souza - e exprimem um apelo a valores religiosos, à proteção familiar e a uma ética do trabalho duro como estratégia secular de sobrevivência. Nesta manifestação, este espírito se materializou na defesa do Brasil contra os políticos, identificados como a fonte de toda crise e de prejuízos para a sociedade.

O PT, que se mantém no poder com o apoio desta camada, está sentindo os efeitos da exacerbação das diferenças entre seus princípios e os valores desta classe. Esta ruptura se ensaio de certa forma na candidatura Russomanno, cuja desconstrução foi difícil e cuja gênese ainda não foi devidamente compreendida. Ela se manifesta agora, quando a insatisfação contra políticos em geral se volta contra o partido que está há dez anos no poder.

As reiteradas acusações de golpe que se voltam contra os novos manifestantes não ajuda a estreitar os laços entre eles e a esquerda, e põe água no moinho da direita. O PT e a ultra-esquerda poderiam escolher entender esta nova militância e dialogar com ela, mas, por não compreendê-la, optaram pelo caminho do confronto, acusando-a de golpista. Sinal de que continuam sem entender nada.

Em tempo: nada do que eu descrevi acima justifica atos de violência contra militantes de partidos políticos e movimentos sociais que portavam suas bandeiras no movimento. Aliás, há gente violenta em todos os lados, e os anarquistas Black Block estão aí para demonstrar isso.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

E o poder se dobra ao povo


Só digo uma coisa: a democracia avançou. E isto trará ganhos econômicos a médio prazo. A vitória da manifestação é um sinal de que estamos vivendo o que Acemoglu e Robinson definiram como ciclo virtuoso da inclusividade das instituições políticas.

Que fique de lição: se te derem um gás pimenta, junte vinagre e faça uma salada democrática.

O que a Gota d'Água tem a dizer sobre a mobilização de hoje

Jovens sem histórico de militância, desvinculados de grupos políticos organizados, que em um cenário de luta decidem se mobilizar em um nível inédito. Declaram-se apartidários e querem mudanças. Parece que estou descrevendo as mobilizações juvenis de agora, mas estou falando da militância que surgiu na USP entre 1999 e 2000, que se articularam em duas gestões do DCE: a Universidade em Movimento e a Gota d'Água.

Apesar de a Gota d'Água ter se apresentado como contraponto ao que foi a Universidade em Movimento, elas tinham muito em comum. Reuniam militantes de classe média, estudantes da USP, que tinham uma consciência política formada em silêncio, fora dos partidos políticos. A primeira leva, que deu origem à Universidade em Movimento, se organizou em torno de Fóruns de Educação promovidos pelo DCE. A segunda, que se articulou na Gota d'Água, formou-se nos grupos de discussão organizados durante a greve da USP em 2000.

A diferença principal é que a Universidade em Movimento se organizou em torno do núcleo da gestão Carcará, que estava à frente do DCE em 1999. O PSTU se integrou a esta gestão apenas no final, mas o principal polo aglutinador era a Força Socialista, corrente da esquerda petista. Hoje grande parte desta corrente está no PSOL. Já a Gota d'Água formou uma identidade própria, reunindo lideranças moderadas que não aceitaram a influência da esquerda petista e do PSTU na FFLCH, Poli e Largo São Francisco e militantes que começaram a se mobilizar na greve de 2000.

Era uma vanguarda apartidária, mas isso não significava que fossem conservadores. Quando estavam todos juntos no Comitê de Greve, organizaram a primeira ocupação da reitoria da USP deste século, e foram peça chave na onda de lutas que agitou o ano 2000. Contudo, enquanto as correntes ortodoxas como o PSTU se embebiam na ilusão de estar liderando o processo, o descontentamento com a condução partidária levou a militância nova à reorganização.

Parte menor permaneceu em torno na Força Socialista, que de todas as correntes partidárias foi a que mais respeitou a característica daquela vanguarda, e formou a tese "Para além dos muros e das máscaras" e a maior parte da chapa "De que lado você samba?". Mas a maioria não aceitou nem mesmo a direção desta, e buscou um caminho próprio. Constituíram uma chapa vencedora das eleições do DCE daquele ano.

A avaliação de todos, inclusive de quem estava na esquerda ortodoxa, era de que a Gota d'Água era um movimento pelego. De fato, havia muita liderança moderada entre eles, e alguns apoiaram candidatos do PT nas eleições daquele ano, como Nabil Bonduki. Contudo, aquelas lideranças, tanto  forneceram quadros para a esquerda acadêmica e partidária que estão atuando até hoje. Um exemplo é o economista Pedro Barros, do IPEA, um dos maiores especialistas em economia venezuelana que eu conheço. Além disso, as virtudes e os vícios do movimento estudantil da USP hoje foram criados por aquela geração de militantes.

Hoje vejo o discurso apartidário se voltar contra uma nova geração de manifestantes como se voltou contra aquela. E isto me preocupa. Esta postura não abriu o diálogo: pelo contrário, afastou aquela geração da direção do movimento daquele momento. É preciso entender as razões do apartidarismo, e talvez uma revisão do fenômeno Gota d'Água possa nos ajudar.

Em tempo: esta análise é fruto de uma revisão que se iniciou dentro do PSTU já em 2000, por dois militantes, e foi interrompida abruptamente por uma luta fracional cheia de desvios burocráticos dentro do partido. Como resultado desta luta, e da ingenuidade de um dos militantes, os dois deixaram o partido em 2001. Eu era um deles.

terça-feira, 18 de junho de 2013

As vozes da perplexidade

Abaixo, uma síntese de opiniões entreouvidas de certos grupos:

Petistas: O que estamos vendo é um golpe de massas da direita. É gente da classe média que não aceita o Lula nem o Bolsa Família.

Tucanos e conservadores: O PT acostumou o povo na baderna, e agora não controla o movimento.

PSTU e PSOL: O movimento não aceita os partidos, logo está tomado de conservadores que não farão a revolução

Classe média de direita que mudou de barco: O povo está indignado com o PT, e quer a volta do FMI

Petistas que mudaram de barco: Graças ao Bolsa Família, o povo aguenta uma caminhada e vai para o protesto sem desmaiar

Policiais: atiramos, mas foi o Alckmin que mandou

Certa mídia: Ontem era baderna, hoje é movimento justo

Em resumo, eles não entenderam nada. Por isso estão perplexos.

Relato do que eu vi

Ontem, 17 de junho, eu estava lá. Fazia 13 anos que eu não ia a uma passeata. E o que eu vi foi realmente algo novo. Diferente do que tínhamos no final dos anos 1990 durante o Fora FHC, não se tratava de um movimento organizado no sentido em que entidades reúnem ônibus e levam seus militantes orgânicos às ruas. A maioria era cidadãos comuns, que saíram do trabalho ou da escola e foram à rua. Não havia carro de som, bandeiras eram poucas, e a maioria levava cartazes em cartolina.

Esta falta de "organização" explica a ausência de uma pauta clara, mas neste momento é uma boa notícia. O que vimos ontem, e o que estamos vendo, é uma insatisfação em busca de uma significação. Insatisfação da sociedade, pressionada por um estado ineficiente e tomado por burocratas e corruptos de alto a baixo, e por um mercado cruel e incapaz de assegurar a dignidade humana. Ou como diria Habermas, a expressão de um mundo da vida colonizado e aprisionado pelo sistema.

Por ser uma insatisfação difusa, reuniu de tudo. A nossa primavera tem mais de maio de 1968, em seu significado anti-burocrático, e menos de primavera árabe. Por isso, hoje, no Day After, começam alguns questionamentos, especialmente de militantes da ultra-esquerda contra o espírito apartidário do movimento. Por isso a perplexidade dos políticos tradicionais. Sinto informar, mas o apartidarismo é reflexo da ausência de democracia dentro dos partidos políticos, que impedem um fenômeno como Obama, imposto de baixo para cima nas primárias do partido democrata.

Do processo iniciado ontem, os políticos tradicionais são os maiores perdedores. Por que não adianta mais vender de forma marqueteira a redistribuição de renda, os programas sociais ou o Plano Real como ponto de chegada da política. Estes se tornaram ponto de partida, e ganhará quem puder apontar caminhos para o futuro, permitindo a destruição criativa que só a democracia e a inclusividade das instituições podem fazer com a economia. Justamente por isso, os partidos da ultra-esquerda, especialmente PSTU e PSOL, sairão desta do mesmo tamanho que entraram. Eles têm o mérito de estar ao lado das manifestações desde o começo, mas também não entenderam o seu significado. E, diferentemente do que as vozes do conservadorismo insistem em gritar, não são eles que lideram o processo.

domingo, 16 de junho de 2013

O problema da democracia brasileira somos nós

A revista Economist publica anualmente o seu Democracy Index, que busca classificar quão democráticos são os países do mundo. A classificação deles considera quatro grupos de países: democracia plena, democracia imperfeita, regimes híbridos e regimes autoritários. Pelo critério da Economist, estamos no segundo grupo. A primeira vista, queremos acreditar que o problema está neles, nos políticos, e isto é em parte verdade. Mas quando decompomos o índices brasileiro, percebemos que eles não estão sozinhos.

O índice avalia e gera indicadores para quatro fatores: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis. Vejamos as notas que o Brasil recebe em cada um destes aspectos, em uma escala de 0 a 10:

  • Processo eleitoral e pluralismo: 9,58
  • Funcionamento do governo: 7,50
  • Participação política: 5
  • Cultura política: 4,38
  • Liberdades civis: 9,12

Ou seja, de acordo com a Economist, estamos muito bem nos aspectos institucionais - eleições e liberdades civis - razoáveis no funcionamento democrático do governo, mas vamos muito mal na participação política e na cultura política. Na definição da área de inteligência da publicação, "uma cultura de passividade e apatia, cidadãos obedientes e dóceis, não são consistentes com a democracia". E ainda mais: "A democracia floresce quando cidadãos querem participar do debate público, eleger representantes e participar de partidos políticos".

Estas palavras do relatório da Economist deveria servir de alerta para nós. Nos últimos dias tenho percebido a resistência de abordagens partidárias diante dos fatos que vimos nas maiores cidades do Brasil. Para alguns, a manifestações estão erradas por que são "petistas", para outros porque são "tucanas" ou "de classe média". Na verdade, para a principal porta-voz do capitalismo mundial, o problema está na cultura que leva alguns a desqualificar a prática da manifestação.

Estamos em uma democracia jovem, e precisamos aprender a usá-la a nosso favor. Já avançamos muito: temos alternância de poder, sem risco de golpe de estado, e membros do partido no poder chegaram a ser condenados por corrupção, sem que isso abrisse uma crise institucional. Agora, nós cidadãos, precisamos aprender a não dar descanso aos políticos.

A grande descoberta da democracia ocidental é que governos funcionam melhor quando são submetidos a constante pressão. Por isso, nas democracias plenas, todo o espectro ideológico vai às ruas. O Tea Party nos Estados Unidos ou os opositores ao casamento gay na França talvez fossem considerados arruaceiros no Brasil. Mas talvez o problema esteja aqui, naqueles que querem resolver o problema votando a cada quatro anos e esquecendo o assunto neste interregno. Por isso, aquele que faz passeata "atrapalha o trânsito", e quem vaia a presidente é "classe mérdia" ingrata.

O grande avanço que estamos tendo no Brasil é desvinculação da participação política de uma pauta partidária. As manifestações não são de petistas ou tucanos, são de índios, sindicalistas, religiosos, homossexuais, ciclistas, usuários de transporte público. E agora, as manifestações são pelo direito de se manifestar. O próximo passo talvez seja convencer os que reclamam do trânsito ou das vaias de que eles não precisam de polícia, mas de tomar as ruas, também eles.

sábado, 15 de junho de 2013

O problema do transporte público

Não é de hoje que se reclama do transporte público em São Paulo. E não dá para negar que o tema tem recebido bastante atenção nos últimos anos. Basta ver que o principal ponto que levou Haddad à prefeitura foi o transporte público - a promessa de bilhete único mensal e o desmonte da proposta de passagem proporcional de Russomanno.

Contudo, o período mais recente foi marcado por uma combinação de crescimento da demanda, especialmente pela inserção da nova classe média - ou nova classe trabalhadora, como diria Jessé Souza -, sem crescimento equivalente nos investimentos. Dados da Secretaria de Transportes Metropolitanos atestam que o número de passagens no sistema sobre trilhos (Metro + CPTM + ViaQuatro) sob gestão estadual cresceu 20% entre 2010 e 2012, atingindo 2 bilhões de passageiros. O sistema da SPTrans, por sua vez, embora esteja estagnado no mesmo período, transporta 2,9 bilhões de passageiros por ano.

Uma explicação para este fenômeno está na maior inserção da classe C no mercado de trabalho. De acordo com o IBGE, o total de pessoas ocupadas, isto é, com um emprego formal, na Região Metropolitana de São Paulo cresceu nos últimos dez anos de 7,58 milhões de pessoas (abril 2003) para 9,5 milhões (abril 2013). Esses dois milhões de pessoas a mais trabalhando estão pressionando a demanda pelo transporte público.

Esta demanda foi beneficiada por alguma forma de subsídio. De acordo com a STM, o percentual de passageiros pagantes no sistema caiu de 79% para 70% desde a implantação do Bilhete Único em 2005. Os 30% restante se dividem entre passageiros gratuitos - especialmente idosos - subsidiados - estudantes, bilhete fidelidade - e integrações intermodal.

Contudo, o elemento da percepção de custo se traduz não só no mero atendimento, mas no conforto obtido em termos de tempo e condições de viagem. O Metrô de São Paulo transporta 8,6 pessoas por metro quadrado. Isto porque a disponibilidade de transporte, apesar de crescente, não consegue dar conta da demanda. O resultado é que, para o usuário, estamos diante de um serviço de qualidade cada vez pior.

A solução do transporte pública esbarra nos conflitos políticos estéreis entre governo e oposição. A integração entre Metrô e SPTrans no Bilhete único atrasou em um ano porque a prefeita de São Paulo era do PT, e o governador do PSDB. O acordo só foi fechado em 2005, quando o partido controlava prefeitura e governo. As greves lideradas pelo sindicato dos metroviários, controlado pela Conlutas (PSOL/PSTU), também pressionam os custos e geram transtornos para o usuário.

Logo, o problema não está no custo, mas na relação custo benefício. Um exemplo está na solução encontrada pelos próprios usuários, o transporte por fretamento. No deslocamento Mogi das Cruzes-São Paulo, o usuário aceita pagar mais de R$ 300/mês por um transporte de qualidade, em detrimento de R$ 150/mês no sistema CPTM. A percepção de valor entre um e outro serviço, caracterizada em tempo de deslocamento e condições de viagem, eleva a predisposição do consumidor em arcar por um serviço mais caro.

Neste sentido, o problema para o usuário de transporte público é que os sucessivos reajustes de passagem não se traduzem em melhoria do serviço. Assim, pagar R$ 3,20 por um ônibus ou metrô superlotado se torna caro, ainda que isto represente um alto custo para o estado em termos de subsídios.

Qual a saída? Sem um compromisso público, assegurado por mecanismos de controle social e de transparência, com a melhoria da qualidade do transporte público, os R$ 0,20 de aumento seguirão custando muito caro às autoridades insensíveis.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Da arte de se piorar uma situação

Até ontem a situação das manifestações violentas na Paulista era um problema. Depois da noite de ontem, tornou-se algo ainda mais sério. Tornou-se uma crise política. Graças à inabilidade dos governos federal, estadual e municipal, a Polícia Militar agiu da única forma que sabe: com truculência. O resultado é que se abriu uma situação que até já recebeu verbete na Wikipedia - a Revolta da Salada - e cujo resultado tornou-se imprevisível.

Algumas variáveis:

  • O tamanho da truculência certamente submeterá o governo brasileiro e paulista à pressão internacional. A existência de jornalistas feridos e presos arbitrariamente, neste sentido, só piora a situação
  • A opinião pública mudou completamente de lado - com exceção de segmentos fascistóides, a maioria está recriminando a barbárie da noite de ontem. E os dedos estão apontados para os governos.
  • O perfil da nova liderança do movimento exige dos governos criatividade para encontrar soluções. E esta é uma competência em falta nos políticos que temos hoje. Portanto, ou alguém - no governo ou no movimento - mostra um talento escondido e se torna herói, ou o resultado desta situação será o pior possível
  • Desta mobilização surgirá uma nova liderança social, cujo perfil não temos como saber agora. O desafio neste momento é entender qual será este novo perfil, quais serão suas virtudes e quais seus vícios, pois isto definirá o rumo das mobilizações sociais daqui para a frente.

Sobre a passagem e outras passagens

Este texto tem apenas a pretensão de tentar abrir um pouco os horizontes para entendermos melhor o fenômeno das manifestações contra o aumento das passagens de ônibus, especialmente em São Paulo. Escrito ao calor dos acontecimentos, com o distanciamento de quem não estava no meio do gás lacrimogêneo, e de quem não apoia nem o vandalismo nem a truculência policial. Mas, especialmente, este é um olhar de quem acredita estarmos em um momento histórico especial, em que as categorias tradicionais de análise não costumam funcionar, e nos quais os fenômenos sociais gostam de surpreender ao observador desatento. Por isso, usando uma expressão de Pierre Bourdieu, este é um exercício de ruptura epistemológica, ou seja, de tentar sair do lugar comum ao confrontar o fato social.

Causas do apoio de massas ao Movimento Passe Livre
O Movimento Passe Livre em São Paulo tem se caracterizado por organizar manifestações sempre que há aumento de passagens. Até agora, sempre foram manifestações isoladas, esvaziadas. Em 2013 foi diferente. Por quê?
A resposta não está no valor do aumento da passagem, em si mesma abaixo da inflação do período, mas no contexto mais amplo. Antes da passagem de ônibus, o trabalhador enfrentou uma elevação geral do custo de vida, concentrada especialmente em alimentos. De acordo com o IBGE, o grupo Alimentos e bebidas teve aumento de preços em torno de 5,98%, contra 2,88% de IPCA acumulado desde janeiro. Diferente de outros surtos inflacionários recentes, o aumento do preço do alimento é mais difícil de ser administrado no orçamento familiar, comprimindo os outros gastos. Por isso, aumentos de preços de comida costumam ter potencial incendiário de mobilização - vale lembrar os casos dos saques ocorridos no Brasil em 1983 e 1998, e mesmo a Primavera Árabe, ocorrida após uma alta geral de preços que levou os alimentos a representarem mais de 80% do orçamento médio das famílias egípcias.
O aumento das passagens não incomodou mais o cidadão comum que o aumento do custo de vida. Contudo, ele pode encontrar um movimento social organizado e disposto a colocar-se contra mais esta elevação de custo. Por isso, esta pauta canalizou uma insatisfação inconsciente e generalizada contra a corrosão do poder de compra da população, causada principalmente pela alta dos alimentos.

Perfil da nova liderança
O Movimento Passe Livre é um movimento novo, organizado fora das entidades tradicionais do movimento social do Brasil, como UNE e CUT. Por isso, não se amarra a compromissos políticos com este ou aquele governo. Mais do que isto, ele se organizou em posição de conflito contra estas entidades, especialmente a UNE, que entrou em choque com o embrião do movimento em sua primeira mobilização na Bahia em 2002.
Por este motivo, o Movimento Passe Livre cresceu em estreita cooperação com a extrema esquerda brasileira, que tem tentado se posicionar como pólo crítico de esquerda ao governo do PT. Desde 2003, PSTU e PSOL buscam estimular as mobilizações contra o governo Lula e Dilma, especialmente em seus aspectos mais liberalizantes.
O PT e seus avatares no movimento, como a CUT e a UNE, vem perdendo pouco a pouco a capacidade de criticar o governo. Mais do que isto, o próprio governo do PT vem se afastando dos elementos mais combativos do movimento social, em detrimento do fortalecimento da coalização de centro-esquerda que o apoia. O governo do PT não apresenta um programa tradicional de esquerda no governo, e o partido, mesmo apesar de seu discurso contraditório (vale ler A segunda alma do PT, de André Singer), não tem se posicionado como pólo à esquerda da coalizão, ou seja, como impulsionador da esquerdização do programa.
Na falta de um elemento crítico dentro da coalizão, que coesionasse os militantes mais combativos no apoio ao governo, a posição dúbia dos êmulos do PT no movimento fortaleceu a extrema-esquerda. Hoje a Conlutas, liderada pelo PSTU e correntes mais esquerdistas do PSOL, é uma das centrais sindicais que mais crescem no Brasil.
O Movimento Passe Livre opera em linha com a extrema esquerda, mas não pensa como ela - basta ver o tom moderado do artigo publicado pelas lideranças do movimento na Folha de S. Paulo. Isto torna o cenário ainda mais imponderável. No final dos anos 1990, o peso político do PT e seus êmulos no movimento social permitiu manter o movimento de contestação ao governo FHC sob controle, conduzindo-o à solução eleitoral de 2002. Com esta nova liderança, desatrelada das instituições tradicionais, a solução do conflito torna-se cada vez mais imponderável.

A fragilidade das lideranças políticas
Em momentos como estes uma liderança política mostra a que veio, solucionando ou agravando uma crise social. Nos anos 1940, um improvável Harry Truman, ligado a mafias políticas do sul atrasado dos Estados Unidos, conduziu os Estados Unidos no início da Guerra Fria de forma a fortalecer sua posição diante de uma URSS poderosa e com controle de maior parte da Europa após a Segunda Guerra Mundial. Em compensação, um homem de caráter como Jimmy Carter foi incapaz de conduzir de forma satisfatória a crise diplomática aberta com a invasão da embaixada dos EUA no Irã.
São Paulo não tem nem uma liderança como Truman, nem um homem de caráter como Carter. Tem dois burocratas de capacidade limitada de elaboração política, Alckmin e Haddad. Nenhum dos dois se destaca na condução de crises políticas. E, diante de uma novidade como o movimento contra o aumento das passagens, tem agido de forma a piorar o cenário.
A inépcia dos dois lideres aparece sob a forma de intransigência. Falta uma avaliação adequada de cenário, e criatividade na condução de soluções. Não souberam abrir nenhum canal de diálogo, nem combinar doses equilibradas de tensionamento e distensionamento. Dificultaram as coisas.
Neste sentido, Alckmin está em vantagem, afinal dialoga com sua base social, mais conservadora que a de Haddad. O prefeito, do PT, nada tem a ganhar com um conflito aberto com um movimento social - quem não gosta de passeata não passará a votar no PT por causa desta postura. Já o governador finca pés em seu eleitorado de maior renda e mais conservador, incomodado com o impacto da "baderna" no trânsito da cidade.
O PT, aliás, só tem a perder com o estado atual das coisas. Causador da inflação, incapaz de construir a paz e em confronto aberto com os movimentos sociais mais dinâmicos, perde apoio pela esquerda e pela direita. A capacidade demonstrada nos anos 1990 de controlar o movimento de massas a seu favor parece ter se perdido na cômoda vida do poder.

Por fim, a polícia
Para acabar, registre-se a incompetência dos policiais de São Paulo na condução do conflito. A Polícia Militar de São Paulo não é treinada para combater o crime, mas para construir o terror institucional. Neste sentido, ela é o último bastião da ditadura, mais fiel aos métodos do DOI-Codi que até mesmo as Forças Armadas.
Na condução do conflito com os manifestantes, utilizaram-se da mesma abordagem fracassada adotada na Cracolândia e no combate ao PCC: a instalação generalizada do terror e da arbitrariedade em lugar do uso inteligente da força. Assim como faltou inteligência para diferenciar o pobre do bandido do PCC, ou o dependente do traficante na cracolândia, faltou capacidade para diferenciar o manifestante pacífico do baderneiro.
Esta polícia truculenta e anti-democrática, que acabou fortalecendo os elementos mais anárquicos e violentos do movimento pelo passe livre, só existe porque interessa a uma parcela considerável da sociedade paulista. Esta parcela não quer o fim do crime, mas assegurar que o pobre, a "gente diferenciada", não se aproxime de seu mundo bolha. Por isso não é uma polícia de CSI, mas um braço institucionalizado do terror social a serviço do preconceito de classe. Curiosamente, é este terror que traz segurança aos círculos frequentados dos muitos manifestantes de classe média dos últimos dias.