domingo, 30 de junho de 2013

As manifestações e a Economia

Este blog foi criado para falar de economia. Ficou esquecido por dois anos porque ninguém liga para economia. E foi retomado porque precisava externar uma reflexão sobre este grande sacolejo que o Brasil está passando, e que tem a ver com mais de dez anos de reflexão. E agora acho que cabe falar da relação entre democracia, as manifestações que estamos vendo e a Economia.

Basicamente, boa parte do debate sobre democracia e desenvolvimento econômico se divide entre duas correntes, aqui apresentadas de forma bem genérica:

  • Um pessoal da chamada economia neoclássica costuma identificar uma relação direta entre democracia e livre mercado. Hellen Milner, da Universidade de Princeton, chegou a produzir uma interessante revisão bibliográfica que aponta a existência desta correlação na teoria, mas não em pesquisa empírica. Contudo, este é um ponto de vista forte na ortodoxia econômica e não deve ser desprezado. Quem quiser ver uma versão pós-crise de 2008 desta corrente, leia O fim do livre mercado, de Ian Bremmer.
  • No outro extremo autores desenvolvimentistas costumam dizer que pelo contrário, a democracia pode atrapalhar o desenvolvimento econômico de países subdesenvolvidos. Alice Amsden, do MIT, chegava a interpretar o crescimento no Sudeste Asiático como resultado da imposição de uma disciplina sobre o empresariado local por meio do Estado - expressa em trabalhos interessantes como A Ascenção do "Resto". Outro autor defensor de abordagem similar é Ha-Joon Chang, um economista coreano autor de textos sobre desenvolvimento como Chutando a Escada e Os Maus Samaritanos.
Mais recentemente uma outra corrente vem ganhando força no debate sobre a correlação entre democracia e desenvolvimento. Com base na teoria de Schumpeter e na modelagem da teoria dos jogos, entre outras referências, autores como Douglass North, Amartya Sen e Joseph Stiglitz - todos Prêmios Nobel em Economia - vem trabalhando a relação entre instituições e desenvolvimento. Para estes, as instituições do mercado são moldadas com base em uma "barganha cooperativa" entre os setores da sociedade com maior poder de fato em mãos. Logo, o mercado em uma dada sociedade reflete não a alocação mais eficiente de recursos conforme a teoria neoclássica, mas a maximização dos ganhos destes setores mais poderosos. Neste sentido, a democracia, por diluir o poder entre diversos agentes da sociedade, levaria este processo de barganha a um nível mais próximo do mercado eficiente.

Nesta linha, um trabalho bem simples de entender e que, ao meu ver, amarra bem este raciocínio é o livro Por que as Nações Fracassam, de Daron Acemoglu (MIT) e James Robinson (Harvard). Para eles, mais importante do que a existência ou não de mercados eficientes, o desenvolvimento de um país está relacionado a quão inclusivas são as instituições econômicas e políticas deste país. Instituições inclusivas seriam aquelas que permitem o acesso a determinados direitos econômicos a um amplo conjunto de cidadãos, e não a uns poucos magnatas. Instituições extrativas, por sua vez, submetem toda a economia ao interesse de alguns poucos beneficiados. Neste caso, a economia não avança e a população é pobre. No outro, como a criatividade e a iniciativa são protegidas e premiadas, o país avança e a população enriquece.

O mais interessante no modelo de Acemoglu e Robinson é que para eles instituições inclusivas não são construídas da noite para o dia, mas se desenvolvem por meio de um longo "círculo virtuoso da inclusividade". Este processo se desencadeia quando, em uma determinada conjuntura crítica que provoca uma mudança institucional - por exemplo, uma Revolução - estabelece-se uma situação de equilíbrio de poder na sociedade por meio do qual um grupo não consegue impor sozinho sua vontade sobre os demais. A partir daí, a sociedade passa a tomar medidas para se proteger sempre que um engraçadinho tenta tirar proveito dos outros. Na reação da sociedade a cada avanço - de grupos empresariais, políticos, sindicatos etc. - as instituições se tornam mais e mais inclusivas.

Penso - e isto foi uma descoberta interessante que fiz durante o mestrado e estou tentando explorar melhor no doutorado - que vivenciamos um círculo virtuoso de inclusividade no Brasil desde o fim da ditadura militar. Desde este momento, atores sociais vem interferindo no debate político de forma a assegurar que a pauta do momento seja levada a cabo, mas dentro de certos limites. Assim foi com o combate à inflação: a sociedade deu apoio a uma agenda liberal voltada à estabilização, mas houve resistência contra determinadas medidas arriscadas, como a privatização da Petrobras e a proposta de reforma trabalhista de Fernando Henrique. O mesmo aconteceu com o governo Lula: a sociedade demandou a distribuição de renda, mas vem resistindo a que se coloque a estabilidade em risco. E quem disse isso antes de mim foi o Instituto Brasileiro de Economia, da FGV, em uma de suas cartas.

Quando os manifestantes foram às ruas contra o aumento da passagem do transporte público, muitos viram o curto prazo, e chamaram qualquer revogação do aumento de populismo. Olhando no longo prazo, isto pode representar uma barreira de proteção sobre o orçamento público, para que não se privilegie tanto desonerações que interessam ao grande capital em detrimento dos serviços sociais. E a alocação dos royalties do petróleo na educação e na saúde também pode ter resultados benéficos no desenvolvimento futuro do Brasil.

Ainda que nos frustremos com o curto prazo, imagino que o que estamos vendo agora nos ajudará a ser um país melhor no longo prazo.

sábado, 29 de junho de 2013

Era uma vez a democracia interna do PT

Quando tirei meu título de eleitor, em meados dos anos 1990, achei por bem filiar-me a um partido para ter uma atuação política mais efetiva. Tornei-me petista. E o que mais me impressionou era que o partido tinha um ambiente vivo de debate e atuação política, independente de ser ou não período de eleições. Logo que cheguei, perguntei pela próxima reunião e fui convidado para participar de uma discussão do Diretório Municipal - era uma cidade pequena. Ali, todos os presentes tinham voz, e o que mais impressionava era como um operário ou um líder comunitário poderia influenciar os rumos do partido. Saí do PT dois anos depois e, quando tentei voltar, já na eleição que levou Lula à presidência, isto já não era mais possível - talvez por isso eu esteja sem partido desde então.

Os anos 1990 foi o período que construiu o processo de transformação organizacional que levou o afastamento do PT de suas bases - e por consequência a onda de protestos que estamos vendo hoje, com a consequente queda de popularidade da presidente Dilma. Não preciso me alongar para dizer que o PT foi um partido construído de baixo para cima, mas talvez precisemos entender melhor o seu processo de burocratização. Parte da análise que faço aqui é vem do acúmulo de discussão da esquerda petista, mas as conclusões são diferentes, e vocês entenderão porque.

A grande novidade do final dos anos 1980 e início dos 1990 no cenário político brasileiro foi que o PT se tornou uma alternativa eleitoral viável, capaz de pelo menos polarizar uma eleição nacional. Muito da polarização semi-estúpida que testemunhamos nas mídias sociais entre petismo e anti-petismo foi gestada neste momento. Colocado como uma alternativa popular e de esquerda, o partido tornou-se um aglutinador daqueles que defendiam mudanças e, por outro lado, concentrou do outro lado o conservadorismo, tanto de elite quanto popular (e quem quiser saber mais recomendo este livro do André Singer).

Do ponto de vista organizacional, este fenômeno atraiu ao PT um conjunto de simpatizantes não necessariamente vinculado à luta social, mas a uma identificação difusa com uma pauta de mudança - ética na política, nacionalismo, politicas sociais e não muito mais que isso. Este conjunto de simpatizantes serviu de motor para um processo de consolidação de uma maioria na direção, por meio da formação de uma nova militância disciplinada e afastada dos debates internos. Isto se deu principalmente por meio da filiação em massa e da formação de chapas para a direção lideradas pelas principais figuras públicas do partido.

Para filiar-se ao PT, o sujeito deveria ter sua filiação aprovada por diretório municipal e contribuir anualmente com a legenda. Neste período, as aprovações de novos filiados passaram a ser quase automáticas, sem muita discussão. Por outro lado, o pagamento das contribuições, cada vez mais baixas e menos representativas nas finanças do partido, passou a ser feito no dia da eleição de delegados para os encontros estaduais e nacionais. Esta combinação de fatores desenvolveu uma massa de militantes acríticos, sem formação política e mobilizados apenas em períodos eleitorais. Nestes mesmos anos 1990 presenciei ônibus de filiados mobilizados para votar em determinadas chapas - inclusive da esquerda petista - e parlamentares "quitando" a contribuição do filiado para que ele pudesse votar.

Some-se a isso o acesso que o partido passou a ter a recursos com o crescimento de sua base parlamentar. A contribuição compulsória do parlamentar ao partido permitiu a formação de toda uma nova geração de burocratas, fundamentada nesta base de militantes amorfa. Ativistas novos incorporados a posições de liderança do partido conseguiam rapidamente um salário equivalente a R$ 4.500 em valores de hoje (R$ 1.500 atualizado pelo IPCA desde 1996) sem ter necessariamente qualificação profissional para encontrar um emprego similar no mercado de trabalho. O resultado foi o desenvolvimento de uma dependência financeira que foi aos poucos degenerando essa liderança.

Ao mesmo tempo, o partido precisava manter uma retórica de combate para manter aglutinada a militância e anular as críticas de esquerda petista quanto ao caminho que o partido estava tomando. Por isso, a tese mais coerente do ponto de vista da moderação programática que o PT estava imprimindo a si mesmo, Por uma Democracia Republicana, liderada por José Genoino, foi minoritária no Congresso do PT de 1999. A direção majoritária preferiu aprovar uma resolução fluida a favor do socialismo que aplacava os ânimos das correntes de esquerda, mas mantinha coesa a base partidária. Depois o grupo de Genoino uniu-se à maioria e formaram o Campo Majoritário, que comanda o partido até hoje, dessa forma que você está vendo.

A aprovação do Processo de Eleição Direta para a direção do partido e a eleição para o governo federal consolidou a burocratização. Os espaços de discussão passaram a ser cada vez restritos e desnecessários, as lideranças tornaram-se burocratas de governo. Os setores mais radicais da esquerda petista romperam e ajudaram a formar o PSOL. E formou-se aquilo que André Singer chamou de As Duas Almas do PT: um discurso moderado para fora, e um discurso radical indefinido para a base acrítica de militantes, mantendo-a mobilizada contra um suposto ataque das elites ao governo do povo.

O que estamos vendo agora, com um PT perplexo diante de manifestações que o questionam de frente, é efeito colateral deste processo. Afinal, a base disciplinada e que defende qualquer porcaria que o governo faça impede o partido de sentir o real pulso da situação política, e reduz sua capacidade de reação. São dez anos de governo, nos quais o partido se engessou e perdeu sua capacidade de criar. Paga agora o preço. Pelo menos nesta história eles não vivem felizes para sempre.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

A falta de democracia dos partidos

Já coloquei aqui um testemunho pessoal sobre um movimento de caráter apartidário que presenciei há mais de dez anos. De fato, a resistência aos partidos políticos só faz crescer desde os anos 1990, e não é um fenômeno das mobilizações recentes. A cantilena em defesa dos partidos é tão velha quanto - eu mesmo a repeti várias vezes. O fato é que os ativistas políticos dos últimos anos têm procurado outros meios - ONGs, trabalho voluntário.

Uma das razões é a ausência de efetiva democracia partidária no Brasil (outra pode ser lida aqui). Nossos partidos muitas vezes não passam de estruturas eleitorais, sem vida interna nem espaços de debates fora dos anos de eleição. Não existe a prática das prévias, e muitas decisões são tomadas pelas cúpulas. Nas eleições de 2006, o PSDB pensou em realizar uma prévia, mas não conseguiu por não ter um cadastro efetivo dos filiados.

A legislação eleitoral não avança muito neste sentido. Ela assegura ao filiado o direito a se candidatar a cargos eleitorais ou de direção partidária, e obriga que os candidatos sejam aprovados em convenção. Na prática, essas convenções não passam de eventos festivos para aclamar decisões anteriores - já vi convenção aprovar candidato e o partido definir coligação depois.

Na prática a única forma de um filiado influenciar a cúpula é se elegendo a um cargo público. Ainda assim, pode enfrentar dificuldades sérias - o Russomanno tentou bater de frente com o Maluf no PP e perdeu.
Ajudaria muito se os direitos que os partidos prevêem aos filiados em seus estatutos fossem realmente assegurados pelo Estado - afinal estão registrados no TSE.

Na ausência de um efetivo espaço de debate e deliberação democrática dentro dos partidos, ficam neles os arrivistas, e saem os ativistas. Perde a democracia representativa.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Repensar a polícia

O tamanho das manifestações de junho foi amplificado em reação à violência policial verificada nas ruas de São Paulo no dia 13 de junho. Contudo, esse é o recado menos ouvido das ruas. Sintomático disso é a afirmação de Márcio Lacerda, prefeito de Belo Horizonte, de que a polícia havia "prendido pouco".

Ontem um suposto vândalo foi preso por ter em casa um livro sobre a História do movimento punk. Nesta semana o Bope fez mais uma incursão violenta em favela, no Complexo da Maré, Rio de Janeiro. Ambas são práticas de um policiamento baseado no terror, que tem sido a praxe da Segurança Pública no Brasil desde a ditadura.

Pinheirinho, Belo Monte, Vigário Geral. Três exemplos de como a polícia faz na periferia todos os dias o que fez no centro de São Paulo em 13 de junho. Três exemplos de uma estratégia baseada no terror sobre o mais fraco.

E as posturas do Ministro da Justiça e do governador do Distrito Federal mostram que não há diferenças partidárias quando se trata do terrorismo de estado exercido por meio das polícias.

Esta polícia violenta e pouco estratégica no combate ao crime é um elemento chave de uma microfísica do poder no Brasil. Por um lado, ela se reproduz por meio da seleção dos perfis de policiais mais adequados a este formato. É comum policial fazer treinamento nós Estados Unidos e voltar impressionado com o armamento da SWAT - e não com as técnicas forenses de investigação. Corrupção e truculência fazem parte do DNA desta organização.

Por outro lado, esta polícia atende aos interesses de uma classe média e alta que quer distância da "gente diferenciada" das periferias. Mais do que combater o crime, a violência policial conta com endorsement de toda uma classe para a proteção de seu modo de vida. Isto inclui seus delitos - o que explica porque o tráfico de drogas não é combatido pra valer.

Contudo, há sinais de mudança. Tanto Belo Monte quanto a operação na Maré tiveram repercussão via redes sociais. Afinal, esta nova classe média - os batalhadores de Jessé Souza - cresceram, conquistaram algum acesso à cidadania, e agora querem respeito.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

A democracia se defende

Nas semanas que se passaram, em diversos momentos levantou-se a dúvida sobre o risco da democracia. Quando os governos decidiram baixar o sarrafo nas manifestações, quando grupos de inspiração pouco democrática tentaram atacar fisicamente partidos políticos; ou nas idas e vindas da Constituinte exclusiva, cada um desses momentos foi interpretado como um risco à democracia.

E contudo, olhando para trás, o que vemos é o vigor do processo democrático. As manifestações não puderam ser impedidas por ninguém - nem pela CBF, cujo presidente é um conhecido torturador da ditadura. Os governos e, desde ontem, até o Legislativo, foram obrigados a ceder. E o que temos neste momentos é um amplo processo de transformação institucional.

Eu disse lá atrás e repito agora que nossa cultura de participação política cidadã precisa evoluir para que a democracia cresça. Mas é inegável que, além de instituições democráticas fortes, eleições livres e alternância de poder, o Brasil conta com mecanismos de segurança que defendem a democracia dos riscos.

Um deles é o fato de que nenhum grupo político ou social tem poder suficiente para afastar seus adversários do jogo democrático de forma definitiva. Nem o partido no poder, nem a oposição, nem o Judiciário, nem as ruas, nem o poder econômico, nem ninguém. Nem mesmo a grande mídia.

Este equilíbrio de poder de fato obriga os atores políticos a construírem acordos para sobreviver. E o sinal de que um acordo é bom é se ninguém sai satisfeito totalmente com ele.

Outro aspecto é a memória da ditadura e a reação a ela. Toda vez que há sinal de risco para a democracia, a sociedade reage. Foi assim no dia 17, quando as ruas foram tomadas em resposta à brutalidade policial do dia 13. Não foi uma resposta com medo, mas com uma coragem tal que acuou os governos.

Por fim, um aprendizado que deve ficar desses dias: os políticos funcionam melhor quando acuados. Quando as pessoas tomaram as ruas, a pauta política melhorou: saiu dos conchavos palacianos e incorporou as demandas da sociedade. Ontem a Câmara aprovou uma destinação dos royalties do petróleo que havia sido rejeitada meses atrás.

E a democracia brasileira termina junho melhor do que começou.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Do plebiscito

A presidente Dilma avançou em sua estratégia de jogar com as mobilizações. Desta vez, sacou uma velha proposta do PT - a Constituinte exclusiva para aprovar a reforma política - embalada por um plebiscito. Desde ontem esta proposta está embaralhando o debate público.

Vou descartar aqui as abordagens jurídicas positivistas à Kelsen - os constitucionalistas estão se esbaldando nisso. Minha reflexão é sociopolítica. Outro dia, ao avaliar o pronunciamento da presidente, disse que ela estava dividindo os manifestantes entre os que podem ser atraídos e aqueles com quem não há acordo. O plebiscito é mais um passo neste sentido.

Os oposicionistas de sempre - com destaque à entrevista de Serra ao Roda Viva - reagiram negativamente à proposta. Os fisiológicos estão quietos, talvez se manifestem hoje. E muitos dos manifestantes reagiram positivamente, ainda que entre descrentes e perplexos.

Neste sentido, Dilma já está ganhando. Pois se não houver plebiscito, o custo cairá sobre os políticos tradicionais. Se houver, será vitória dela. E aos que questionam a necessidade de um plebiscito, um argumento que se alinha àos anseios das ruas: você é contra que o povo debata e decida?
Alguém disse isso ontem no Facebook: Dilma deu um truco.

Update: Sei das dificuldades jurídicas, mas abrir mão da Constituinte é um passo atras perigoso. O plebiscito pode se resumir às propostas perigosas que andam circulando por aí - eu pessoalmente votaria contra todas elas:

  • voto em lista - sem democracia interna nos partidos seria golpe das cúpulas
  • voto distrital - encheria o Congresso de coronel local e tiraria deputados ligados a causas extraterritoriais
  • financiamento público - é um absurdo dar mais dinheiro público aos partidos sem nenhum controle

A reforma política que interessa é aquela que estimula a participação popular, ou seja, permite que eu e você possamos influenciar os partidos aos quais venhamos a ser filiados e contribuir inclusive financeiramente com as candidaturas que temos maior aderência.

domingo, 23 de junho de 2013

De coxinhas e maisenas

Entrevistador: Analista de Bagé, o senhor é ortodoxo?
Analista de Bagé: Tão ortodoxo quanto caixa de maisena
(Luís Fernando Veríssimo)

Desde quarta-feira, o incrível movimento de massas que tomou as ruas se viu dividido. De um lado, manifestantes experientes, que acusam os novos de serem "coxinhas", uma expressão que se consagrou por definir um tipo paulistano, pelo menos na descrição de Leonardo Rossatto Queiroz. Do outro, os novos manifestantes, que passaram a ser submetidos a uma onda de sermões daqueles que se apresentaram como experientes e insones - "nós nunca dormimos".

Venho acusando desde então que ninguém está entendendo nada, e um dos motivos é uma visão demasiado ortodoxa dos fatos que estamos presenciando. "Tão ortodoxa quanto caixa de maisena", diria o Analista de Bagé. Ortodoxia é uma coisa que só serve na Igreja - e mesmo assim só se for no espírito dinâmico apresentado por G.K. Chesterton, e não como tradicionalismo vazio de alguns. Ortodoxia na análise social mais atrapalha que ajuda.

Gente tão ortodoxa quanto caixa de maisena percebeu que a pauta de quem aderiu às manifestações não era a mesma deles, que estavam na luta desde antes, quando ninguém notava. "Nós nunca dormimos", dizem, como quem consome mais de dez xícaras de café para ficar acordado.

Os maisenas não entenderam que eles são uma espécie de relógio quebrado, parado, que marca a hora certa duas vezes ao dia. Não foi o relógio que acertou, foi o tempo que coincidiu com o relógio. As manifestações pelo passe livre coincidiram com uma insatisfação latente em toda uma camada na sociedade, e a fizeram explodir. Diante disso, os maisenas tinham duas opções: entendê-los para liderá-los, ou tentar encaixá-los em sua ortodoxia. Optaram pela segunda escolha, e quebraram a cara.

Agora os maisenas reagem como o menino perna de pau que é dono da bola: depois de perder o jogo, pega a bola e acaba com a brincadeira. Saem a dizer que os "cozinhas" deveriam aprender com a História, acusam-nos de fascistas, anti-partido, blá, blá, blá. Sono. O problema não está nos coxinhas, mas em quem não os compreende.

Toda a memória reunida nos partidos de esquerda, que leem Trotsky, Lenin, Nahuel Moreno, parece não servir de nada nessas horas. Para os grupos da ultra-esquerda, bastava trocar a lamentação contra o apartidarismo por uma leitura renovada do Programa de Transição:

É necessário ajudar as massas, no processo de suas lutas cotidianas a encontrar a ponte entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista. Esta ponte deve consistir em um sistema de REIVINDICAÇÕES TRANSITÓRIAS que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado.

Claro que eu não estou interessado na Revolução Socialista, mas quem está deveria reler seus próprios inspiradores. Se não, fica preso às categorias do passado, mais ortodoxo que caixa de maisena. E só para vocês saberem, maisena é ingrediente para produzir coxinha.

Afinal, que insatisfação é essa?
O Datafolha no último sábado mostrou que a maioria dos que estão na rua não é conservadora. Deixa eu repetir: NÃO É CONSERVADORA. Conservadores são apenas 5% dos manifestantes. Mais de 80% defende a democracia. E metade está insatisfeita com a corrupção.

Não adiante ficar perguntando de que corrupção se está falando. Corrupção é um conceito guarda-chuva que abarca a insatisfação das pessoas com a lentidão do estado em atender as demandas da população por conta de um jogo político palaciano muito pouco republicano, especialmente no que envolve o Legislativo. De 2004 a 2010 a vidas das pessoas melhorou, a desigualdade caiu, e as expectativas subiram. Agora as pessoas querem avançar, mas as políticas públicas emperram na incompetência dos quadros técnicos dos municípios, na lentidão para se punir políticos corruptos nos três poderes e três níveis da federação, e na agilidade para se atender a demanda de um Eike Batista.

A própria presidente Dilma se enrolou neste emaranhado, quando interrompeu pela metade sua faxina ética, sem institucionalizar o combate a corrupção e cedendo aos líderes bandidos em troca de uma governabilidade frágil até para aprovar uma medida provisória. Neste sentido, as manifestações podem servir para a presidente dar uma nova guinada em seu governo, servindo de argumento para reduzir ministérios, cortar a alegria da base aliada e inclusive enxugá-la a alguns partidos mais fiéis.

Em dez de maio, o professor e blogueiro Idelber Avelar abria a confidência de um amigo no governo federal: "Minha bronca é com a base do governo nas redes, que aceita tudo, engole tudo, não critica nada. Só piora a nossa situação aqui. Num governo de coalizão, a direita sapateia em cima da gente se não há pressão da base. Na última reunião com o pessoal do [insira aqui um Ministério controlado pela direita, que não vou dizer qual é], eles esfregaram na minha cara: 'não adianta espernear, porque a gente sabe que sua base vai aceitar, sim'"

Pois é. Os maisenas que acusam os coxinhas e dividem o movimento ao invés de entender suas raízes só colocam água no moinho da direita. Entregam os coxinhas à liderança da direita, e fortalecem os fisiológicos dentro do governo. Parabéns, bela revolução vocês estão fazendo.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Dilma e a estratégia de Inocêncio III

Um velho amigo e companheiro militante tinha uma frase que resumia toda e qualquer avaliação de conjuntura: política é resultado. Logo, uma estratégia é boa e ruim se por ela se atingem bons resultados. Por isso, toda e qualquer avaliação do discurso da presidente neste momento é arriscada, porque os resultados não são conhecidos. O que podemos é identificar qual foi a abordagem da presidente e onde ela pretensamente quis chegar.


Optar por um pronunciamento à nação é uma estratégia arriscada. Fernando Collor afundou após um pronunciamento mal pesado e mal medido, considerando a conjuntura naquele momento. Collor optou por conclamar seus apoiadores contra quem pedia o impeachment. Se deu mal.

Dilma fez outra escolha. Ela optou pela estratégia do papa Inocêncio III - que de inocente não tinha nada. O cardeal Lotário de Segni foi eleito papa em um momento crítico da história da cristandade. Movimentos camponeses varriam a Europa condenando o arbítrio dos nobres, a riqueza da burguesia nascente e o poder da Igreja. O Sacro Império Romano Germânico estava dividido entre guelfos, burgueses defensores do primado papal, e guibelinos, nobres alinhados ao imperador alemão. E heresias se misturavam a movimentos que defendiam a reforma da Igreja.

Inocêncio optou por uma estratégia de dividir os conflagrados entre quem estava disposto a compor com Roma e quem não tinha acordo possível. De um lado, reformadores pacíficos como Francisco de Assis e Domingos de Gusmão, que defendiam uma Igreja mais pobre e voltada aos necessitados das cidades. Do outro, grupos hereges como os valdenses e os albigenses.

Dilma está tentando adotar a mesma estratégia, e explorar a heterogeneidade dos manifestantes. Por um lado, condenou o vandalismo com palavras fortes como "arruaceiros" e os setores mais à direita do movimento, que criticam os partidos e pedem o impeachment. Por outro, chamou o movimento passe livre para conversar sobre uma reforma estrutural mais ampla do transporte público nacional.

Os elementos para esta estratégia foram dados pelas redes sociais no decorrer do dia, com setores do movimento acusando os grupos de direita que se uniram às passeatas de fascismo. Desta forma, conformaram-se os dois polos que permitiriam à presidente identificar quem deve ser atraído e quem deve ser combatido. Aqueles que estão criticando o discurso da presidente, pelo menos no que eu vi até agora, são aqueles que ela não esperava atrair para o seu lado.

Entre os indefinidos, a presidente tentou se utilizar da memória da suposta "faxina ética" promovida no primeiro ano de governo para se afirmar como alguém que não tolera corrupção nem mau uso dos gastos públicos. Aliás, fazia tempo que a presidente não apelava a estes discursos.

A presidente também passou alguns recados a quem estava dominando a pauta antes das mobilizações. Afirmou que a cidadania deve ser ouvida antes dos interesses do poder econômico - uma clara referência às disputas de lobbys que afetaram o andamento das MPs dos Portos e das tarifas de energia e aos críticos da sua política econômica - e afirmou que é preciso "oxigenar o sistema político", uma indireta aos partidos da base que tem nos últimos dois anos elevaram o nível da fisiologia.

Por fim, dois pontos: (1) ao dizer que os recursos gastos na construção dos estádios da Copa são de financiamento, a presidente tenta afastar a ideia de que o país está gastando recursos que poderiam ser direcionados a serviços públicos como saúde e educação. E (2) faltou para completar uma reforma ministerial que reduzisse o número de ministério e afastasse os fisiológicos. Esta é uma iniciativa que a presidente precisa fazer logo, para completar o recado dado.

Vai dar certo? Os próximos dias dirão.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Uma insatisfação em busca de significação

O título deste post remonta ao relato que fiz da passeata de segunda-feira neste blog, e volto a ele porque ainda ajuda a nos explicar o que está acontecendo com os nossos jovens. Há uma insatisfação difusa, ainda sem uma cara definida, uma expressão política clara que amalgame esta insatisfação para um foco. Mas agora há uma mudança: as forças políticas tradicionais, que começaram na incompreensão e avançaram para a perplexidade, mudaram agora para o chavão.

Até terça-feira, ninguém entendia nada, e todo mundo admitia isso de uma forma ou de outra. Agora todo mundo acha que entende. Cada um pegou um rótulo pré-fabricado - já falei que no meu caso o único rótulo vermelho que aceito é o red label - e começou a tentar encaixar os fatos em seu próprio estereótipo. Durante esta quinta-feira ouvi que os manifestantes eram comunistas por terem barrado as bandeiras pró-vida e defenderem o fora Feliciano, e que eram fascistas por barrarem as bandeiras do PT, da CUT e até do movimento negro. Afinal o que são os manifestantes?

São uma coisa nova, e não são uma coisa só. São jovens de classe média insatisfeitos, e o ponto em comum acaba aqui. Há insatisfeitos da nova classe média e insatisfeitos da velha. E são jovens. Uma pessoa que tenha 18 anos hoje provavelmente nasceu depois do Plano Real, ou seja, não acompanhou de perto a luta pela redemocratização, a Diretas Já ou o fora Collor. Repetem a fala de Danilo Gentili em seu show "Politicamente Incorreto":

Ah, ela [Dilma] estava ao lado do Genoino e do Zé Dirceu, estava lutando para o meu país ser o que é hoje? Devo a ela o Brasil ser como é? Poxa! Muito obrigado, hein! Você fez um ótimo trabalho!

Veja que a frase acima não é uma rejeição à luta contra a democracia, mas ao estado de coisas atual do Brasil. A geração no poder está acomodada e perdeu a capacidade de criar. Aécio Neves diz isso do PT, mas seu partido também não é um gerador de novidades. O país avançou, tem problemas novos, e ainda estamos discutindo privatização.

O que estamos vendo nas ruas é uma insatisfação antiburocrática. O Movimento Passe Livre, cuja identidade ideológica é mais alinhada a uma certa esquerda tradicional, abriu as portas para uma insatisfação maior, que não cabe no programa da ultra-esquerda. Aliás, não cabe em nenhum programa, nem mesmo no da Rede de Marina Silva.

Dentre os jovens, podemos identificar dois grupos. Um já tem uma experiência de militância, envolvida em mobilizações já existentes como parada gay, marcha das vadias e da maconha. É esta militância mais ligada ao MPL e aos primeiros grupos que se somaram as passeatas contra as tarifas. Esta tem laços mais estreitos com a ultra-esquerda tradicional e aceita melhor certos partidos políticos.

O outro está chegando agora, e se expressa de forma diferente. São estes os que cantam hino nacional, pedem para afastar bandeiras de partidos e movimentos, e trazem para a rua reivindicações de perfil mais conservador. Mas cuidado, a palavra "conservador" gera uma ilusão de ótica em quem a usa de forma tradicional. Se você tende a achar que por detrás dos manifestantes conservadores estão os ricos e poderosos do país, um aviso: estes estão com o governo.

O conservadorismo da massa expressa valores arraigados na chamada "nova classe média" - ou batalhadores, na definição exata de Jessé Souza - e exprimem um apelo a valores religiosos, à proteção familiar e a uma ética do trabalho duro como estratégia secular de sobrevivência. Nesta manifestação, este espírito se materializou na defesa do Brasil contra os políticos, identificados como a fonte de toda crise e de prejuízos para a sociedade.

O PT, que se mantém no poder com o apoio desta camada, está sentindo os efeitos da exacerbação das diferenças entre seus princípios e os valores desta classe. Esta ruptura se ensaio de certa forma na candidatura Russomanno, cuja desconstrução foi difícil e cuja gênese ainda não foi devidamente compreendida. Ela se manifesta agora, quando a insatisfação contra políticos em geral se volta contra o partido que está há dez anos no poder.

As reiteradas acusações de golpe que se voltam contra os novos manifestantes não ajuda a estreitar os laços entre eles e a esquerda, e põe água no moinho da direita. O PT e a ultra-esquerda poderiam escolher entender esta nova militância e dialogar com ela, mas, por não compreendê-la, optaram pelo caminho do confronto, acusando-a de golpista. Sinal de que continuam sem entender nada.

Em tempo: nada do que eu descrevi acima justifica atos de violência contra militantes de partidos políticos e movimentos sociais que portavam suas bandeiras no movimento. Aliás, há gente violenta em todos os lados, e os anarquistas Black Block estão aí para demonstrar isso.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

E o poder se dobra ao povo


Só digo uma coisa: a democracia avançou. E isto trará ganhos econômicos a médio prazo. A vitória da manifestação é um sinal de que estamos vivendo o que Acemoglu e Robinson definiram como ciclo virtuoso da inclusividade das instituições políticas.

Que fique de lição: se te derem um gás pimenta, junte vinagre e faça uma salada democrática.

O que a Gota d'Água tem a dizer sobre a mobilização de hoje

Jovens sem histórico de militância, desvinculados de grupos políticos organizados, que em um cenário de luta decidem se mobilizar em um nível inédito. Declaram-se apartidários e querem mudanças. Parece que estou descrevendo as mobilizações juvenis de agora, mas estou falando da militância que surgiu na USP entre 1999 e 2000, que se articularam em duas gestões do DCE: a Universidade em Movimento e a Gota d'Água.

Apesar de a Gota d'Água ter se apresentado como contraponto ao que foi a Universidade em Movimento, elas tinham muito em comum. Reuniam militantes de classe média, estudantes da USP, que tinham uma consciência política formada em silêncio, fora dos partidos políticos. A primeira leva, que deu origem à Universidade em Movimento, se organizou em torno de Fóruns de Educação promovidos pelo DCE. A segunda, que se articulou na Gota d'Água, formou-se nos grupos de discussão organizados durante a greve da USP em 2000.

A diferença principal é que a Universidade em Movimento se organizou em torno do núcleo da gestão Carcará, que estava à frente do DCE em 1999. O PSTU se integrou a esta gestão apenas no final, mas o principal polo aglutinador era a Força Socialista, corrente da esquerda petista. Hoje grande parte desta corrente está no PSOL. Já a Gota d'Água formou uma identidade própria, reunindo lideranças moderadas que não aceitaram a influência da esquerda petista e do PSTU na FFLCH, Poli e Largo São Francisco e militantes que começaram a se mobilizar na greve de 2000.

Era uma vanguarda apartidária, mas isso não significava que fossem conservadores. Quando estavam todos juntos no Comitê de Greve, organizaram a primeira ocupação da reitoria da USP deste século, e foram peça chave na onda de lutas que agitou o ano 2000. Contudo, enquanto as correntes ortodoxas como o PSTU se embebiam na ilusão de estar liderando o processo, o descontentamento com a condução partidária levou a militância nova à reorganização.

Parte menor permaneceu em torno na Força Socialista, que de todas as correntes partidárias foi a que mais respeitou a característica daquela vanguarda, e formou a tese "Para além dos muros e das máscaras" e a maior parte da chapa "De que lado você samba?". Mas a maioria não aceitou nem mesmo a direção desta, e buscou um caminho próprio. Constituíram uma chapa vencedora das eleições do DCE daquele ano.

A avaliação de todos, inclusive de quem estava na esquerda ortodoxa, era de que a Gota d'Água era um movimento pelego. De fato, havia muita liderança moderada entre eles, e alguns apoiaram candidatos do PT nas eleições daquele ano, como Nabil Bonduki. Contudo, aquelas lideranças, tanto  forneceram quadros para a esquerda acadêmica e partidária que estão atuando até hoje. Um exemplo é o economista Pedro Barros, do IPEA, um dos maiores especialistas em economia venezuelana que eu conheço. Além disso, as virtudes e os vícios do movimento estudantil da USP hoje foram criados por aquela geração de militantes.

Hoje vejo o discurso apartidário se voltar contra uma nova geração de manifestantes como se voltou contra aquela. E isto me preocupa. Esta postura não abriu o diálogo: pelo contrário, afastou aquela geração da direção do movimento daquele momento. É preciso entender as razões do apartidarismo, e talvez uma revisão do fenômeno Gota d'Água possa nos ajudar.

Em tempo: esta análise é fruto de uma revisão que se iniciou dentro do PSTU já em 2000, por dois militantes, e foi interrompida abruptamente por uma luta fracional cheia de desvios burocráticos dentro do partido. Como resultado desta luta, e da ingenuidade de um dos militantes, os dois deixaram o partido em 2001. Eu era um deles.

terça-feira, 18 de junho de 2013

As vozes da perplexidade

Abaixo, uma síntese de opiniões entreouvidas de certos grupos:

Petistas: O que estamos vendo é um golpe de massas da direita. É gente da classe média que não aceita o Lula nem o Bolsa Família.

Tucanos e conservadores: O PT acostumou o povo na baderna, e agora não controla o movimento.

PSTU e PSOL: O movimento não aceita os partidos, logo está tomado de conservadores que não farão a revolução

Classe média de direita que mudou de barco: O povo está indignado com o PT, e quer a volta do FMI

Petistas que mudaram de barco: Graças ao Bolsa Família, o povo aguenta uma caminhada e vai para o protesto sem desmaiar

Policiais: atiramos, mas foi o Alckmin que mandou

Certa mídia: Ontem era baderna, hoje é movimento justo

Em resumo, eles não entenderam nada. Por isso estão perplexos.

Relato do que eu vi

Ontem, 17 de junho, eu estava lá. Fazia 13 anos que eu não ia a uma passeata. E o que eu vi foi realmente algo novo. Diferente do que tínhamos no final dos anos 1990 durante o Fora FHC, não se tratava de um movimento organizado no sentido em que entidades reúnem ônibus e levam seus militantes orgânicos às ruas. A maioria era cidadãos comuns, que saíram do trabalho ou da escola e foram à rua. Não havia carro de som, bandeiras eram poucas, e a maioria levava cartazes em cartolina.

Esta falta de "organização" explica a ausência de uma pauta clara, mas neste momento é uma boa notícia. O que vimos ontem, e o que estamos vendo, é uma insatisfação em busca de uma significação. Insatisfação da sociedade, pressionada por um estado ineficiente e tomado por burocratas e corruptos de alto a baixo, e por um mercado cruel e incapaz de assegurar a dignidade humana. Ou como diria Habermas, a expressão de um mundo da vida colonizado e aprisionado pelo sistema.

Por ser uma insatisfação difusa, reuniu de tudo. A nossa primavera tem mais de maio de 1968, em seu significado anti-burocrático, e menos de primavera árabe. Por isso, hoje, no Day After, começam alguns questionamentos, especialmente de militantes da ultra-esquerda contra o espírito apartidário do movimento. Por isso a perplexidade dos políticos tradicionais. Sinto informar, mas o apartidarismo é reflexo da ausência de democracia dentro dos partidos políticos, que impedem um fenômeno como Obama, imposto de baixo para cima nas primárias do partido democrata.

Do processo iniciado ontem, os políticos tradicionais são os maiores perdedores. Por que não adianta mais vender de forma marqueteira a redistribuição de renda, os programas sociais ou o Plano Real como ponto de chegada da política. Estes se tornaram ponto de partida, e ganhará quem puder apontar caminhos para o futuro, permitindo a destruição criativa que só a democracia e a inclusividade das instituições podem fazer com a economia. Justamente por isso, os partidos da ultra-esquerda, especialmente PSTU e PSOL, sairão desta do mesmo tamanho que entraram. Eles têm o mérito de estar ao lado das manifestações desde o começo, mas também não entenderam o seu significado. E, diferentemente do que as vozes do conservadorismo insistem em gritar, não são eles que lideram o processo.

domingo, 16 de junho de 2013

O problema da democracia brasileira somos nós

A revista Economist publica anualmente o seu Democracy Index, que busca classificar quão democráticos são os países do mundo. A classificação deles considera quatro grupos de países: democracia plena, democracia imperfeita, regimes híbridos e regimes autoritários. Pelo critério da Economist, estamos no segundo grupo. A primeira vista, queremos acreditar que o problema está neles, nos políticos, e isto é em parte verdade. Mas quando decompomos o índices brasileiro, percebemos que eles não estão sozinhos.

O índice avalia e gera indicadores para quatro fatores: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis. Vejamos as notas que o Brasil recebe em cada um destes aspectos, em uma escala de 0 a 10:

  • Processo eleitoral e pluralismo: 9,58
  • Funcionamento do governo: 7,50
  • Participação política: 5
  • Cultura política: 4,38
  • Liberdades civis: 9,12

Ou seja, de acordo com a Economist, estamos muito bem nos aspectos institucionais - eleições e liberdades civis - razoáveis no funcionamento democrático do governo, mas vamos muito mal na participação política e na cultura política. Na definição da área de inteligência da publicação, "uma cultura de passividade e apatia, cidadãos obedientes e dóceis, não são consistentes com a democracia". E ainda mais: "A democracia floresce quando cidadãos querem participar do debate público, eleger representantes e participar de partidos políticos".

Estas palavras do relatório da Economist deveria servir de alerta para nós. Nos últimos dias tenho percebido a resistência de abordagens partidárias diante dos fatos que vimos nas maiores cidades do Brasil. Para alguns, a manifestações estão erradas por que são "petistas", para outros porque são "tucanas" ou "de classe média". Na verdade, para a principal porta-voz do capitalismo mundial, o problema está na cultura que leva alguns a desqualificar a prática da manifestação.

Estamos em uma democracia jovem, e precisamos aprender a usá-la a nosso favor. Já avançamos muito: temos alternância de poder, sem risco de golpe de estado, e membros do partido no poder chegaram a ser condenados por corrupção, sem que isso abrisse uma crise institucional. Agora, nós cidadãos, precisamos aprender a não dar descanso aos políticos.

A grande descoberta da democracia ocidental é que governos funcionam melhor quando são submetidos a constante pressão. Por isso, nas democracias plenas, todo o espectro ideológico vai às ruas. O Tea Party nos Estados Unidos ou os opositores ao casamento gay na França talvez fossem considerados arruaceiros no Brasil. Mas talvez o problema esteja aqui, naqueles que querem resolver o problema votando a cada quatro anos e esquecendo o assunto neste interregno. Por isso, aquele que faz passeata "atrapalha o trânsito", e quem vaia a presidente é "classe mérdia" ingrata.

O grande avanço que estamos tendo no Brasil é desvinculação da participação política de uma pauta partidária. As manifestações não são de petistas ou tucanos, são de índios, sindicalistas, religiosos, homossexuais, ciclistas, usuários de transporte público. E agora, as manifestações são pelo direito de se manifestar. O próximo passo talvez seja convencer os que reclamam do trânsito ou das vaias de que eles não precisam de polícia, mas de tomar as ruas, também eles.

sábado, 15 de junho de 2013

O problema do transporte público

Não é de hoje que se reclama do transporte público em São Paulo. E não dá para negar que o tema tem recebido bastante atenção nos últimos anos. Basta ver que o principal ponto que levou Haddad à prefeitura foi o transporte público - a promessa de bilhete único mensal e o desmonte da proposta de passagem proporcional de Russomanno.

Contudo, o período mais recente foi marcado por uma combinação de crescimento da demanda, especialmente pela inserção da nova classe média - ou nova classe trabalhadora, como diria Jessé Souza -, sem crescimento equivalente nos investimentos. Dados da Secretaria de Transportes Metropolitanos atestam que o número de passagens no sistema sobre trilhos (Metro + CPTM + ViaQuatro) sob gestão estadual cresceu 20% entre 2010 e 2012, atingindo 2 bilhões de passageiros. O sistema da SPTrans, por sua vez, embora esteja estagnado no mesmo período, transporta 2,9 bilhões de passageiros por ano.

Uma explicação para este fenômeno está na maior inserção da classe C no mercado de trabalho. De acordo com o IBGE, o total de pessoas ocupadas, isto é, com um emprego formal, na Região Metropolitana de São Paulo cresceu nos últimos dez anos de 7,58 milhões de pessoas (abril 2003) para 9,5 milhões (abril 2013). Esses dois milhões de pessoas a mais trabalhando estão pressionando a demanda pelo transporte público.

Esta demanda foi beneficiada por alguma forma de subsídio. De acordo com a STM, o percentual de passageiros pagantes no sistema caiu de 79% para 70% desde a implantação do Bilhete Único em 2005. Os 30% restante se dividem entre passageiros gratuitos - especialmente idosos - subsidiados - estudantes, bilhete fidelidade - e integrações intermodal.

Contudo, o elemento da percepção de custo se traduz não só no mero atendimento, mas no conforto obtido em termos de tempo e condições de viagem. O Metrô de São Paulo transporta 8,6 pessoas por metro quadrado. Isto porque a disponibilidade de transporte, apesar de crescente, não consegue dar conta da demanda. O resultado é que, para o usuário, estamos diante de um serviço de qualidade cada vez pior.

A solução do transporte pública esbarra nos conflitos políticos estéreis entre governo e oposição. A integração entre Metrô e SPTrans no Bilhete único atrasou em um ano porque a prefeita de São Paulo era do PT, e o governador do PSDB. O acordo só foi fechado em 2005, quando o partido controlava prefeitura e governo. As greves lideradas pelo sindicato dos metroviários, controlado pela Conlutas (PSOL/PSTU), também pressionam os custos e geram transtornos para o usuário.

Logo, o problema não está no custo, mas na relação custo benefício. Um exemplo está na solução encontrada pelos próprios usuários, o transporte por fretamento. No deslocamento Mogi das Cruzes-São Paulo, o usuário aceita pagar mais de R$ 300/mês por um transporte de qualidade, em detrimento de R$ 150/mês no sistema CPTM. A percepção de valor entre um e outro serviço, caracterizada em tempo de deslocamento e condições de viagem, eleva a predisposição do consumidor em arcar por um serviço mais caro.

Neste sentido, o problema para o usuário de transporte público é que os sucessivos reajustes de passagem não se traduzem em melhoria do serviço. Assim, pagar R$ 3,20 por um ônibus ou metrô superlotado se torna caro, ainda que isto represente um alto custo para o estado em termos de subsídios.

Qual a saída? Sem um compromisso público, assegurado por mecanismos de controle social e de transparência, com a melhoria da qualidade do transporte público, os R$ 0,20 de aumento seguirão custando muito caro às autoridades insensíveis.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Da arte de se piorar uma situação

Até ontem a situação das manifestações violentas na Paulista era um problema. Depois da noite de ontem, tornou-se algo ainda mais sério. Tornou-se uma crise política. Graças à inabilidade dos governos federal, estadual e municipal, a Polícia Militar agiu da única forma que sabe: com truculência. O resultado é que se abriu uma situação que até já recebeu verbete na Wikipedia - a Revolta da Salada - e cujo resultado tornou-se imprevisível.

Algumas variáveis:

  • O tamanho da truculência certamente submeterá o governo brasileiro e paulista à pressão internacional. A existência de jornalistas feridos e presos arbitrariamente, neste sentido, só piora a situação
  • A opinião pública mudou completamente de lado - com exceção de segmentos fascistóides, a maioria está recriminando a barbárie da noite de ontem. E os dedos estão apontados para os governos.
  • O perfil da nova liderança do movimento exige dos governos criatividade para encontrar soluções. E esta é uma competência em falta nos políticos que temos hoje. Portanto, ou alguém - no governo ou no movimento - mostra um talento escondido e se torna herói, ou o resultado desta situação será o pior possível
  • Desta mobilização surgirá uma nova liderança social, cujo perfil não temos como saber agora. O desafio neste momento é entender qual será este novo perfil, quais serão suas virtudes e quais seus vícios, pois isto definirá o rumo das mobilizações sociais daqui para a frente.

Sobre a passagem e outras passagens

Este texto tem apenas a pretensão de tentar abrir um pouco os horizontes para entendermos melhor o fenômeno das manifestações contra o aumento das passagens de ônibus, especialmente em São Paulo. Escrito ao calor dos acontecimentos, com o distanciamento de quem não estava no meio do gás lacrimogêneo, e de quem não apoia nem o vandalismo nem a truculência policial. Mas, especialmente, este é um olhar de quem acredita estarmos em um momento histórico especial, em que as categorias tradicionais de análise não costumam funcionar, e nos quais os fenômenos sociais gostam de surpreender ao observador desatento. Por isso, usando uma expressão de Pierre Bourdieu, este é um exercício de ruptura epistemológica, ou seja, de tentar sair do lugar comum ao confrontar o fato social.

Causas do apoio de massas ao Movimento Passe Livre
O Movimento Passe Livre em São Paulo tem se caracterizado por organizar manifestações sempre que há aumento de passagens. Até agora, sempre foram manifestações isoladas, esvaziadas. Em 2013 foi diferente. Por quê?
A resposta não está no valor do aumento da passagem, em si mesma abaixo da inflação do período, mas no contexto mais amplo. Antes da passagem de ônibus, o trabalhador enfrentou uma elevação geral do custo de vida, concentrada especialmente em alimentos. De acordo com o IBGE, o grupo Alimentos e bebidas teve aumento de preços em torno de 5,98%, contra 2,88% de IPCA acumulado desde janeiro. Diferente de outros surtos inflacionários recentes, o aumento do preço do alimento é mais difícil de ser administrado no orçamento familiar, comprimindo os outros gastos. Por isso, aumentos de preços de comida costumam ter potencial incendiário de mobilização - vale lembrar os casos dos saques ocorridos no Brasil em 1983 e 1998, e mesmo a Primavera Árabe, ocorrida após uma alta geral de preços que levou os alimentos a representarem mais de 80% do orçamento médio das famílias egípcias.
O aumento das passagens não incomodou mais o cidadão comum que o aumento do custo de vida. Contudo, ele pode encontrar um movimento social organizado e disposto a colocar-se contra mais esta elevação de custo. Por isso, esta pauta canalizou uma insatisfação inconsciente e generalizada contra a corrosão do poder de compra da população, causada principalmente pela alta dos alimentos.

Perfil da nova liderança
O Movimento Passe Livre é um movimento novo, organizado fora das entidades tradicionais do movimento social do Brasil, como UNE e CUT. Por isso, não se amarra a compromissos políticos com este ou aquele governo. Mais do que isto, ele se organizou em posição de conflito contra estas entidades, especialmente a UNE, que entrou em choque com o embrião do movimento em sua primeira mobilização na Bahia em 2002.
Por este motivo, o Movimento Passe Livre cresceu em estreita cooperação com a extrema esquerda brasileira, que tem tentado se posicionar como pólo crítico de esquerda ao governo do PT. Desde 2003, PSTU e PSOL buscam estimular as mobilizações contra o governo Lula e Dilma, especialmente em seus aspectos mais liberalizantes.
O PT e seus avatares no movimento, como a CUT e a UNE, vem perdendo pouco a pouco a capacidade de criticar o governo. Mais do que isto, o próprio governo do PT vem se afastando dos elementos mais combativos do movimento social, em detrimento do fortalecimento da coalização de centro-esquerda que o apoia. O governo do PT não apresenta um programa tradicional de esquerda no governo, e o partido, mesmo apesar de seu discurso contraditório (vale ler A segunda alma do PT, de André Singer), não tem se posicionado como pólo à esquerda da coalizão, ou seja, como impulsionador da esquerdização do programa.
Na falta de um elemento crítico dentro da coalizão, que coesionasse os militantes mais combativos no apoio ao governo, a posição dúbia dos êmulos do PT no movimento fortaleceu a extrema-esquerda. Hoje a Conlutas, liderada pelo PSTU e correntes mais esquerdistas do PSOL, é uma das centrais sindicais que mais crescem no Brasil.
O Movimento Passe Livre opera em linha com a extrema esquerda, mas não pensa como ela - basta ver o tom moderado do artigo publicado pelas lideranças do movimento na Folha de S. Paulo. Isto torna o cenário ainda mais imponderável. No final dos anos 1990, o peso político do PT e seus êmulos no movimento social permitiu manter o movimento de contestação ao governo FHC sob controle, conduzindo-o à solução eleitoral de 2002. Com esta nova liderança, desatrelada das instituições tradicionais, a solução do conflito torna-se cada vez mais imponderável.

A fragilidade das lideranças políticas
Em momentos como estes uma liderança política mostra a que veio, solucionando ou agravando uma crise social. Nos anos 1940, um improvável Harry Truman, ligado a mafias políticas do sul atrasado dos Estados Unidos, conduziu os Estados Unidos no início da Guerra Fria de forma a fortalecer sua posição diante de uma URSS poderosa e com controle de maior parte da Europa após a Segunda Guerra Mundial. Em compensação, um homem de caráter como Jimmy Carter foi incapaz de conduzir de forma satisfatória a crise diplomática aberta com a invasão da embaixada dos EUA no Irã.
São Paulo não tem nem uma liderança como Truman, nem um homem de caráter como Carter. Tem dois burocratas de capacidade limitada de elaboração política, Alckmin e Haddad. Nenhum dos dois se destaca na condução de crises políticas. E, diante de uma novidade como o movimento contra o aumento das passagens, tem agido de forma a piorar o cenário.
A inépcia dos dois lideres aparece sob a forma de intransigência. Falta uma avaliação adequada de cenário, e criatividade na condução de soluções. Não souberam abrir nenhum canal de diálogo, nem combinar doses equilibradas de tensionamento e distensionamento. Dificultaram as coisas.
Neste sentido, Alckmin está em vantagem, afinal dialoga com sua base social, mais conservadora que a de Haddad. O prefeito, do PT, nada tem a ganhar com um conflito aberto com um movimento social - quem não gosta de passeata não passará a votar no PT por causa desta postura. Já o governador finca pés em seu eleitorado de maior renda e mais conservador, incomodado com o impacto da "baderna" no trânsito da cidade.
O PT, aliás, só tem a perder com o estado atual das coisas. Causador da inflação, incapaz de construir a paz e em confronto aberto com os movimentos sociais mais dinâmicos, perde apoio pela esquerda e pela direita. A capacidade demonstrada nos anos 1990 de controlar o movimento de massas a seu favor parece ter se perdido na cômoda vida do poder.

Por fim, a polícia
Para acabar, registre-se a incompetência dos policiais de São Paulo na condução do conflito. A Polícia Militar de São Paulo não é treinada para combater o crime, mas para construir o terror institucional. Neste sentido, ela é o último bastião da ditadura, mais fiel aos métodos do DOI-Codi que até mesmo as Forças Armadas.
Na condução do conflito com os manifestantes, utilizaram-se da mesma abordagem fracassada adotada na Cracolândia e no combate ao PCC: a instalação generalizada do terror e da arbitrariedade em lugar do uso inteligente da força. Assim como faltou inteligência para diferenciar o pobre do bandido do PCC, ou o dependente do traficante na cracolândia, faltou capacidade para diferenciar o manifestante pacífico do baderneiro.
Esta polícia truculenta e anti-democrática, que acabou fortalecendo os elementos mais anárquicos e violentos do movimento pelo passe livre, só existe porque interessa a uma parcela considerável da sociedade paulista. Esta parcela não quer o fim do crime, mas assegurar que o pobre, a "gente diferenciada", não se aproxime de seu mundo bolha. Por isso não é uma polícia de CSI, mas um braço institucionalizado do terror social a serviço do preconceito de classe. Curiosamente, é este terror que traz segurança aos círculos frequentados dos muitos manifestantes de classe média dos últimos dias.